Literatura & Educação
Blog da Profa. Dra. Neide Luzia de Rezende e dos integrantes de seu Grupo de Estudos - Faculdade de Educação da USP

PROJETO NA LICENCIATURA: a dupla dimensão

O trabalho com projetos tem sido uma constante no sistema escolar atual. Mas, a exemplo do que disse há dez anos (1996) Hernández, um de seus teóricos mais importantes, parece ter-se tornado uma fórmula, uma receita, não um heurístico, desprovido da carnadura que um projeto requer para ser potencializado: a “pedagogia de projetos” em voga hoje na área educacional, como forma de organizar o conteúdo a ensinar, ao ser transformado em fórmula, já não é capaz de propiciar o conhecimento. Em geral, o que se chama de projeto na escola é um esquema de projeto, em que se enunciam o tema, os objetivos, a justificativa, o cronograma, uma bibliografia, tudo organizado em uma, duas, três páginas no máximo, como se o “como fazer” fosse dominado por todos. É claro que é possível encontrar projetos fortes, bem feitos, bem orientados, com elaboração e condução realizadas com responsabilidade pelos profissionais na escola, mas estes constituem a exceção, não a regra. Em razão disso, a “moda” de projetos tornou-se malvista e para estes torcem o nariz aqueles que já consideram “pedagogos” e “pedagogia” cientistas e ciência de importância menor.
O projeto, no curso de Licenciatura, tal qual é concebido na concepção desta professora, deve se referir a uma experiência imaginada, e isso representa um primeiro obstáculo para a sua elaboração pelos alunos das minhas turmas. Como o professor e o licenciando não estão efetivamente desenvolvendo um trabalho real com os alunos na escola, não estão inseridos de fato no universo escolar e cientes do andamento e da rotina, o projeto parece tecer, pois, uma “abstração revolucionária”, como uma vez disse um aluno – ainda que esse aluno tenha um conhecimento de escola básica (que é um conjunto de referências formado por aquilo que guarda do passado, o que conhece do presente, as representações de escola que construiu e pelas quais se pauta, bem como ter para si uma concepção de língua e de seu ensino).
Portanto, tendo em vista esse contexto, ao elaborarmos um projeto para a escola nas aulas de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, temos de levar em consideração ainda os elementos a seguir.
Uma concepção de projeto. A concepção de projeto na escola é adotada de Hernández (1996), ou seja, os alunos lêem o texto dele e o discutimos em sala, buscando adaptá-lo para o exercício escolar que estamos propondo. Em essência, o projeto, como proposto pelo autor espanhol, deve responder a uma necessidade da escola e a um interesse do professor, e todos – alunos e professores – aprendem; suas etapas podem ser revistas, planejando-se o conteúdo no tempo e antecipando-se os obstáculos; o percurso por um tema-problema favorece a análise, uma vez que se investiga para encontrar uma solução; busca-se sempre estabelecer relação entre a escola e o que acontece fora dela...

Relação do projeto com a disciplina. O projeto é, antes de tudo, um trabalho acadêmico, ou seja, trata-se de um instrumento de ensino e aprendizagem; portanto, deve responder – e talvez mais do que qualquer outro gênero na universidade, por suas características – àquela dupla dimensão: responder a uma prática social e a uma prática escolar. Disso segue-se que é necessário também verificar a que interesse da disciplina o projeto responde.
Na concepção do autor espanhol, o projeto é interdisciplinar, deve ser fruto de um trabalho em equipe e de responsabilidade da escola. Ora, ele se torna, na disciplina de Metodologia, um projeto de língua portuguesa, portanto espoliado de sua natureza interdisciplinar (se se considerar interdisciplinar aqui como uma inter-relação de disciplinas escolares); contudo, propomo-nos manter uma perspectiva interdisciplinar para que se preserve a essência dessa concepção de projeto, procurando estabelecer uma intrínseca relação entre os diferentes domínios do conhecimento e não uma relação exterior com as disciplinas escolares. Assim, ainda que reduzido a uma disciplina, ele guarda a interdisciplinaridade in nuce, o que permite uma abertura para questões mais amplas, suscitadas durante o desenvolvimento do trabalho.

Um ideal de projeto. Os estagiários de língua portuguesa raramente, pela situação do estágio no nosso contexto, têm a oportunidade de colocar em prática qualquer projeto realizado na Faculdade de Educação. O que fazem (e o que se propõe que façam) é observar e ouvir as necessidades apresentadas pelo professor da disciplina na escola, observar o perfil dos alunos e também suas dificuldades na matéria, além de buscar desenvolver um projeto que responda àquelas necessidades em parte reais, em parte supostas. Ao propormos o desenvolvimento em grupo de um projeto, é evidente que as intenções devem ser compartilhadas e as idéias, negociadas para que se transformem num tema comum. Quer dizer, aquelas necessidades que os estagiários identificaram, associadas a interesses deles por determinados temas, frutos de discussão no grupo, vão constituir um projeto, que decerto não é real, no sentido de se ater estritamente a determinada situação de determinada escola e de procurar dar uma resposta didática a isso; trata-se de partir dessa realidade como uma espécie de situação-síntese dos problemas que podem ser observados em outras situações escolares, distanciar-nos por meio da reflexão e da investigação capazes de revelar aspectos do real que muitas vezes não aparecem quando o observamos muito de perto e estamos mergulhados no universo em questão. Com base no vivido e observável, projeta-se uma realidade, da qual se procura imaginar, de certo modo ficcionalizando, os obstáculos, os problemas e suas possíveis resoluções. Trabalha-se com uma representação de escola e de projeto – o que de resto faz-se sempre, ainda que se acredite “retratar” a realidade escolar.
Ao se propor a elaboração de um projeto para a sala de aula, busca-se um “ideal de projeto” tanto em relação a sua composição quanto a seu conteúdo: ou seja, que ele tenha, do ponto de vista de sua estruturação, de sua organização formal interna uma extensão e profundidade que permitam visualizar um possível desenvolvimento, em suas diferentes partes (apresentação do tema, pressupostos teóricos e metodológicos, justificativa, objetivos, seqüência didática, mecanismos de avaliação...). No cotidiano escolar essa possibilidade – ou potencialidade – de desenvolvimento e previsão dos obstáculos acaba sendo difícil de ocorrer, uma vez que o tempo se transforma num obstáculo quase intransponível, devido à sobrecarga de trabalho que possuem os professores.
Dessa forma, escrever esses gêneros na universidade pressupõe resgatar esse tempo que a tarefa requer e pensar o trabalho à luz das teorias mobilizadas e das críticas levantadas, buscando repensar os problemas e propor soluções que não aparecem ainda ou aparecem de forma simplificada na prática cotidiana do professor, em geral desgastado pelo excesso de trabalho e desprovido do tempo necessário à reflexão e à mudança.

Aproveitar o ritmo da cultura universitária. A reflexão e a crítica têm um ritmo próprio; ir e voltar sobre o mesmo objeto buscando vê-lo sob ângulos diferentes exige tempo. O ato reflexivo e o crítico estão intimamente associados ao trabalho da escrita – como diz Walter Ong, a escrita permite que se estude. Há um tempo exigido pelo trabalho de leitura e um outro ainda maior exigido pela elaboração escrita. Na escola, parece já não haver esse tempo distendido que o estudo requer. Na fala dos professores, revela-se a ansiedade com a falta de tempo para tudo: cuidar da casa, dos filhos, do cônjuge, de tempo para ler, para preparar aulas, para fazer reuniões pedagógicas (muitas vezes o horário reservado a estas se transformam num surrupiado momento de descontração, quando se queixam dos alunos, da própria escola, se trocam receitas, se comercializam diferentes tipos de produto etc.). A escola não encontra tempo para realizar os seus projetos, só pode fazê-lo no ritmo que adotou, por isso não é de surpreender que o resultado sejam os esquemas desvitalizados, a falta de pesquisa e a dificuldade de escrita por parte dos professores. Por isso, realizar espécies de “projetos ideais” no curso de licenciatura é um modo de se oferecer à atividade o tempo que ela requer e que a universidade pode, em princípio, conceder.

Uma combinação da perspectiva de gênero e de projeto. Sugere-se que seja por meio de um ou mais gêneros que se faça a representação das necessidades supostas ou observadas na escola. Essa temática propicia um trânsito entre a escola e a sociedade, contudo aparecem temas de outra ordem que são igualmente redirecionados para essa perspectiva: é importante que haja no projeto a possibilidade de observar, na escola, por meio da língua, o funcionamento das práticas sociais. Como diz Bakhtin, os discursos respondem às variadas esferas das atividades presentes na sociedade.
Dessa forma, pode-se mobilizar diferentes gêneros discursivos, relativamente estáveis, de modo a serem reconhecidos e apropriados para a comunicação cotidiana. Permite, ademais, a elaboração de seqüências didáticas interessantes, nas quais se incluem atividades de leitura, de escrita, de análise lingüística, de saídas da escola para visitas a lugares de estudo, convites a profissionais de diferentes áreas, escritores etc.

Ter como perspectiva um destinatário para o trabalho. Ter em vista um leitor/interlocutor é essencial para direcioná-lo. Mais do que ser “aplicado” é importante que os autores dos projetos saibam que poderão ser lidos e que seus textos poderão gerar reflexões e outros textos. Como diz Umberto Eco, todo escritor, quando escreve, tem em mente um leitor, empírico ou virtual, e é para essa interlocução que o discurso se modaliza linguisticamente. No caso dos projetos, sua circulação e divulgação indicam quem será esse leitor: 1. os projetos mais bem acabados circularão entre os alunos do ano seguinte e poderão fecundar outros projetos (uma idéia parcial ou integralmente retomada em projeto diferente; uma proposta secundária que se torna principal; um aprofundamento do projeto original etc.); 2. uma seleção mais estrita dos projetos para inclusão nesta revista (antes, eram divulgados num site, já desatualizado, da disciplina), onde poderá ser acessado pelos alunos e, sobretudo, por professores; 3. possibilidade de apresentação dos projetos nas sessões de comunicação tanto dos Seminários de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, quanto da Semana de Educação, na FEUSP, que reúnem licenciandos, pedagogos e muitos professores da rede pública e particular.

Para concluir esta parte, gostaria de enfatizar que a escrita desses trabalhos leva à articulação da pesquisa e da prática na licenciatura, sendo essa prática uma representação da aula de língua portuguesa: busca-se recuperar uma natureza do projeto que tem desaparecido na escola, uma vez que o trabalho escolar promove um achatamento dos seus objetos, reduzindo-os a uma estrutura elementar e descarnada. Busca-se então no projeto realizado em sala de aula recuperar um modelo de projeto capaz de tornar mais aprofundado e efetivo o trabalho.

Neide Luzia de Rezende
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Revista INFLUXO

Do número 1 da revista Influxo constam sequências didáticas que trabalham a poesia elaboradas por alunos de licenciatura em Português da FE-USP

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