Literatura & Educação
Blog da Profa. Dra. Neide Luzia de Rezende e dos integrantes de seu Grupo de Estudos - Faculdade de Educação da USP

INFLUXO: Projetos didáticos de língua e literatura

14:00
Esta é uma revista on line voltada para a publicação de projetos elaborados pelos alunos de licenciatura da disciplina Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa (MELP), da Faculdade de Educação da USP, nas turmas sob minha responsabilidade. São todos projetos voltados para a escola de ensino básico, de 5ª. série ao ensino médio.
Nem todos os sete professores que ministram a disciplina de MELP trabalham com projetos; quando trabalham, introduzem particularidades ditadas por suas linhas de pesquisa, razão pela qual esta revista, por ora, publica projetos de uma só professora, mas está aberta a apreciações futuras de produções de alunos e professores de outras turmas e mesmo de outras unidades e instituições. Além, disso, existem outras publicações eletrônicas coordenadas por grupos e professores ligados à disciplina que podem ser acessadas (ao final desta, elencamos esses endereços).
Por se tratar de uma revista que resulta do trabalho realizado no âmbito da Licenciatura, inevitavelmente articula docência, pesquisa e extensão, o tripé sobre o qual se posiciona a universidade. Nesse caso, pressupostos teóricos e metodológicos são necessários para situar tal trabalho acadêmico, por isso a inclusão de uma Apresentação para situar academicamente o conteúdo da revista e deste seu primeiro número.
Associada à concepção de projeto vinculamos a de gênero discursivo, o que esclarece a opção por números temáticos na revista, sendo o primeiro gênero-tema a Poesia; para o próximo número o escolhido é o Conto.
Tematizar nestes números iniciais os gêneros literários não significa abandonar estudos da língua, uma vez que as formas de composição, o estilo, as escolhas lingüísticas são inerentes à reflexão sobre os gêneros. Ao contrário, a literatura, além das características intrínsecas a ela – aguçamento da sensibilidade, valores, fruição desinteressada, alimento para a alma etc. – “leva a língua para onde quer”, como diz Umberto Eco, cria identidade e comunidade, “mantém em exercício, antes de tudo, a língua como patrimônio coletivo”, mas também a nossa “língua individual”.
A poesia, que inaugura nossa revista, é, pode-se dizer, o grau máximo de densidade poética e, talvez por se prestar menos explicitamente ao vínculo com a realidade imediata, é menos abordada enquanto gênero na escola, e tradicionalmente relegada a alguns procedimentos que visam a um aprendizado técnico, como métrica e rimas, sem conjugá-los à intrinsecamente interpretação.
Por último, devo dizer que os cinco projetos aqui publicados sobre poesia foram coletados ao longo de uma década, provavelmente outros se perderam antes que pudéssemos organizar o nosso banco de projetos. Realizados em grupo em determinados semestres, contaram posteriormente com ajuda de outros alunos para sua edição, cuja forma final foi dada por mim e por Richard Marcello, aluno da pós-graduação, responsável também por toda a parte gráfica da revista.

Neide Luzia de Rezende
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PROJETO NA LICENCIATURA: a dupla dimensão

10:10
O trabalho com projetos tem sido uma constante no sistema escolar atual. Mas, a exemplo do que disse há dez anos (1996) Hernández, um de seus teóricos mais importantes, parece ter-se tornado uma fórmula, uma receita, não um heurístico, desprovido da carnadura que um projeto requer para ser potencializado: a “pedagogia de projetos” em voga hoje na área educacional, como forma de organizar o conteúdo a ensinar, ao ser transformado em fórmula, já não é capaz de propiciar o conhecimento. Em geral, o que se chama de projeto na escola é um esquema de projeto, em que se enunciam o tema, os objetivos, a justificativa, o cronograma, uma bibliografia, tudo organizado em uma, duas, três páginas no máximo, como se o “como fazer” fosse dominado por todos. É claro que é possível encontrar projetos fortes, bem feitos, bem orientados, com elaboração e condução realizadas com responsabilidade pelos profissionais na escola, mas estes constituem a exceção, não a regra. Em razão disso, a “moda” de projetos tornou-se malvista e para estes torcem o nariz aqueles que já consideram “pedagogos” e “pedagogia” cientistas e ciência de importância menor.
O projeto, no curso de Licenciatura, tal qual é concebido na concepção desta professora, deve se referir a uma experiência imaginada, e isso representa um primeiro obstáculo para a sua elaboração pelos alunos das minhas turmas. Como o professor e o licenciando não estão efetivamente desenvolvendo um trabalho real com os alunos na escola, não estão inseridos de fato no universo escolar e cientes do andamento e da rotina, o projeto parece tecer, pois, uma “abstração revolucionária”, como uma vez disse um aluno – ainda que esse aluno tenha um conhecimento de escola básica (que é um conjunto de referências formado por aquilo que guarda do passado, o que conhece do presente, as representações de escola que construiu e pelas quais se pauta, bem como ter para si uma concepção de língua e de seu ensino).
Portanto, tendo em vista esse contexto, ao elaborarmos um projeto para a escola nas aulas de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, temos de levar em consideração ainda os elementos a seguir.
Uma concepção de projeto. A concepção de projeto na escola é adotada de Hernández (1996), ou seja, os alunos lêem o texto dele e o discutimos em sala, buscando adaptá-lo para o exercício escolar que estamos propondo. Em essência, o projeto, como proposto pelo autor espanhol, deve responder a uma necessidade da escola e a um interesse do professor, e todos – alunos e professores – aprendem; suas etapas podem ser revistas, planejando-se o conteúdo no tempo e antecipando-se os obstáculos; o percurso por um tema-problema favorece a análise, uma vez que se investiga para encontrar uma solução; busca-se sempre estabelecer relação entre a escola e o que acontece fora dela...

Relação do projeto com a disciplina. O projeto é, antes de tudo, um trabalho acadêmico, ou seja, trata-se de um instrumento de ensino e aprendizagem; portanto, deve responder – e talvez mais do que qualquer outro gênero na universidade, por suas características – àquela dupla dimensão: responder a uma prática social e a uma prática escolar. Disso segue-se que é necessário também verificar a que interesse da disciplina o projeto responde.
Na concepção do autor espanhol, o projeto é interdisciplinar, deve ser fruto de um trabalho em equipe e de responsabilidade da escola. Ora, ele se torna, na disciplina de Metodologia, um projeto de língua portuguesa, portanto espoliado de sua natureza interdisciplinar (se se considerar interdisciplinar aqui como uma inter-relação de disciplinas escolares); contudo, propomo-nos manter uma perspectiva interdisciplinar para que se preserve a essência dessa concepção de projeto, procurando estabelecer uma intrínseca relação entre os diferentes domínios do conhecimento e não uma relação exterior com as disciplinas escolares. Assim, ainda que reduzido a uma disciplina, ele guarda a interdisciplinaridade in nuce, o que permite uma abertura para questões mais amplas, suscitadas durante o desenvolvimento do trabalho.

Um ideal de projeto. Os estagiários de língua portuguesa raramente, pela situação do estágio no nosso contexto, têm a oportunidade de colocar em prática qualquer projeto realizado na Faculdade de Educação. O que fazem (e o que se propõe que façam) é observar e ouvir as necessidades apresentadas pelo professor da disciplina na escola, observar o perfil dos alunos e também suas dificuldades na matéria, além de buscar desenvolver um projeto que responda àquelas necessidades em parte reais, em parte supostas. Ao propormos o desenvolvimento em grupo de um projeto, é evidente que as intenções devem ser compartilhadas e as idéias, negociadas para que se transformem num tema comum. Quer dizer, aquelas necessidades que os estagiários identificaram, associadas a interesses deles por determinados temas, frutos de discussão no grupo, vão constituir um projeto, que decerto não é real, no sentido de se ater estritamente a determinada situação de determinada escola e de procurar dar uma resposta didática a isso; trata-se de partir dessa realidade como uma espécie de situação-síntese dos problemas que podem ser observados em outras situações escolares, distanciar-nos por meio da reflexão e da investigação capazes de revelar aspectos do real que muitas vezes não aparecem quando o observamos muito de perto e estamos mergulhados no universo em questão. Com base no vivido e observável, projeta-se uma realidade, da qual se procura imaginar, de certo modo ficcionalizando, os obstáculos, os problemas e suas possíveis resoluções. Trabalha-se com uma representação de escola e de projeto – o que de resto faz-se sempre, ainda que se acredite “retratar” a realidade escolar.
Ao se propor a elaboração de um projeto para a sala de aula, busca-se um “ideal de projeto” tanto em relação a sua composição quanto a seu conteúdo: ou seja, que ele tenha, do ponto de vista de sua estruturação, de sua organização formal interna uma extensão e profundidade que permitam visualizar um possível desenvolvimento, em suas diferentes partes (apresentação do tema, pressupostos teóricos e metodológicos, justificativa, objetivos, seqüência didática, mecanismos de avaliação...). No cotidiano escolar essa possibilidade – ou potencialidade – de desenvolvimento e previsão dos obstáculos acaba sendo difícil de ocorrer, uma vez que o tempo se transforma num obstáculo quase intransponível, devido à sobrecarga de trabalho que possuem os professores.
Dessa forma, escrever esses gêneros na universidade pressupõe resgatar esse tempo que a tarefa requer e pensar o trabalho à luz das teorias mobilizadas e das críticas levantadas, buscando repensar os problemas e propor soluções que não aparecem ainda ou aparecem de forma simplificada na prática cotidiana do professor, em geral desgastado pelo excesso de trabalho e desprovido do tempo necessário à reflexão e à mudança.

Aproveitar o ritmo da cultura universitária. A reflexão e a crítica têm um ritmo próprio; ir e voltar sobre o mesmo objeto buscando vê-lo sob ângulos diferentes exige tempo. O ato reflexivo e o crítico estão intimamente associados ao trabalho da escrita – como diz Walter Ong, a escrita permite que se estude. Há um tempo exigido pelo trabalho de leitura e um outro ainda maior exigido pela elaboração escrita. Na escola, parece já não haver esse tempo distendido que o estudo requer. Na fala dos professores, revela-se a ansiedade com a falta de tempo para tudo: cuidar da casa, dos filhos, do cônjuge, de tempo para ler, para preparar aulas, para fazer reuniões pedagógicas (muitas vezes o horário reservado a estas se transformam num surrupiado momento de descontração, quando se queixam dos alunos, da própria escola, se trocam receitas, se comercializam diferentes tipos de produto etc.). A escola não encontra tempo para realizar os seus projetos, só pode fazê-lo no ritmo que adotou, por isso não é de surpreender que o resultado sejam os esquemas desvitalizados, a falta de pesquisa e a dificuldade de escrita por parte dos professores. Por isso, realizar espécies de “projetos ideais” no curso de licenciatura é um modo de se oferecer à atividade o tempo que ela requer e que a universidade pode, em princípio, conceder.

Uma combinação da perspectiva de gênero e de projeto. Sugere-se que seja por meio de um ou mais gêneros que se faça a representação das necessidades supostas ou observadas na escola. Essa temática propicia um trânsito entre a escola e a sociedade, contudo aparecem temas de outra ordem que são igualmente redirecionados para essa perspectiva: é importante que haja no projeto a possibilidade de observar, na escola, por meio da língua, o funcionamento das práticas sociais. Como diz Bakhtin, os discursos respondem às variadas esferas das atividades presentes na sociedade.
Dessa forma, pode-se mobilizar diferentes gêneros discursivos, relativamente estáveis, de modo a serem reconhecidos e apropriados para a comunicação cotidiana. Permite, ademais, a elaboração de seqüências didáticas interessantes, nas quais se incluem atividades de leitura, de escrita, de análise lingüística, de saídas da escola para visitas a lugares de estudo, convites a profissionais de diferentes áreas, escritores etc.

Ter como perspectiva um destinatário para o trabalho. Ter em vista um leitor/interlocutor é essencial para direcioná-lo. Mais do que ser “aplicado” é importante que os autores dos projetos saibam que poderão ser lidos e que seus textos poderão gerar reflexões e outros textos. Como diz Umberto Eco, todo escritor, quando escreve, tem em mente um leitor, empírico ou virtual, e é para essa interlocução que o discurso se modaliza linguisticamente. No caso dos projetos, sua circulação e divulgação indicam quem será esse leitor: 1. os projetos mais bem acabados circularão entre os alunos do ano seguinte e poderão fecundar outros projetos (uma idéia parcial ou integralmente retomada em projeto diferente; uma proposta secundária que se torna principal; um aprofundamento do projeto original etc.); 2. uma seleção mais estrita dos projetos para inclusão nesta revista (antes, eram divulgados num site, já desatualizado, da disciplina), onde poderá ser acessado pelos alunos e, sobretudo, por professores; 3. possibilidade de apresentação dos projetos nas sessões de comunicação tanto dos Seminários de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, quanto da Semana de Educação, na FEUSP, que reúnem licenciandos, pedagogos e muitos professores da rede pública e particular.

Para concluir esta parte, gostaria de enfatizar que a escrita desses trabalhos leva à articulação da pesquisa e da prática na licenciatura, sendo essa prática uma representação da aula de língua portuguesa: busca-se recuperar uma natureza do projeto que tem desaparecido na escola, uma vez que o trabalho escolar promove um achatamento dos seus objetos, reduzindo-os a uma estrutura elementar e descarnada. Busca-se então no projeto realizado em sala de aula recuperar um modelo de projeto capaz de tornar mais aprofundado e efetivo o trabalho.

Neide Luzia de Rezende
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Os projetos sobre poesia

09:46
A natureza histórica do poema se mostra imediatamente no fato de ser um texto que alguém escreveu e que alguém lê. Escrever e ler são atos que se sucedem e que são datáveis. São história. De outra perspectiva, o contrário também é certo. Enquanto escreve, o poeta não sabe como será seu poema; saberá quando, já terminado, o leia. O autor é o primeiro leitor de seu poema e com sua leitura se inicia uma série de interpretações e prazeres. Cada leitura produz um poema distinto. (…) O poema é uma virtualidade transhistórica que se atualiza na história, na leitura. Não há poema em si, mas em mim ou em ti. (...) Cada leitura é histórica e cada uma nega a história. As leituras passam, são história e, ao mesmo tempo, a transpassam, vão mais além dela.
(Octavio Paz, Os filhos do barro, p. 472)

Na perspectiva metodológica decorrente do conceito de gêneros que adotamos, hoje disseminada pela adoção da teoria bakhtiniana quase hegemônica no ensino, é inevitável que práticas sociais e práticas escolares se enredem. Nessa perspectiva, na aprendizagem dos conteúdos escolares pulsa a vida social. É desse modo que propomos aqui o trabalho com a poesia em sala de aula.
Se, como diz Octavio Paz, a poesia só se realiza pela leitura, esta é outra inevitabilidade com que nos defrontamos: na escola é necessário LER a poesia. É verdade que na cultura escolar do século XX, cada vez mais a poesia foi se adaptando, como, de resto, toda a literatura, a uma pretensa visão cientificista, e não é de admirar que “ensinar poesia” é ensinar procedimentos técnicos de composição. Tal representação do gênero se instalou poderosamente no imaginário de professores de português e de autores de livros didático. Entretanto, ultimamente, diante dos novos paradigmas de ensino de língua portuguesa, que privilegiam a construção do sentido, e das novas idéias pedagógicas, que enfatizam o pólo da aprendizagem, esse império tem sido questionado, embora na prática resista.
A construção do sentido e a ênfase no pólo da aprendizagem levam, portanto, a se privilegiar o aluno e, no caso da literatura, a leitura que ele faz do texto; ou seja, não se trata de tomar como objeto de ensino uma tradição literária, um conjunto de textos, mas ver o que essa tradição e esse conjunto de textos – selecionados em função de um determinado objetivo de ensino – propiciaria para a aprendizagem (o que supõe ver aí também uma concepção de aprendizagem: talvez um lugar para o jovem e para o seu presente na história da cultura).
Adotando esses pressupostos, consideramos que a leitura literária é então fundamental para a construção do sentido e do sujeito. Como diz ainda Paz,
“a leitura de um só poema nos revelará com maior certeza do que qualquer investigação histórica e filológica o que é toda a poesia”.
(Octavio Paz, O arco e a lira, p. 50)

É claro que falar em “leitura literária” não significa abandonar o estudo do texto; significa, antes de mais nada, que para se falar de um texto é preciso lê-lo, e que esse ler e falar sobre se assentam em determinados protocolos requeridos pelos próprios textos, como nos leva a pensar nossa idéia de gênero. Assim, ler poesia não é como ler uma notícia de jornal (aliás, é a isso que remete belissimamente o poeta Manuel Bandeira em seu “Poema tirado de uma notícia de jornal”): há um tempo e uma vivência que o poema exige ao apresentar imagens que não revelam todo o sentido de imediato, ao mesmo tempo em que, novamente citando Paz, “a experiência do poema – seu deleite através da leitura ou da recitação – também ostenta uma desconcertante pluralidade e heterogeneidade”, ou seja, por força das necessidades de ensino, voltadas para o coletivo, ocorre na sala de aula uma negociação de sentido que considera as referências comuns do grupo de estudantes (a “comunidade interpretativa”, no dizer de Stanley Fish ) e as interpretações críticas já convencionalizadas trazidas pelo professor, mas não deve tampouco ignorar as sugestões individuais que o poema propicia, que são, em suma, a essência de sua existência.
Para uns, o poema é a experiência do abandono; para outros, do rigor. Os jovens leem versos para ajudá-los a expressar ou conhecer seus sentimentos, como se só no poema as confusas, pressentidas facções do amor, do heroísmo ou da sensualidade pudessem contemplar-se com nitidez. Cada leitor busca algo no poema. E não é raro que o encontre: já o levava dentro”. (Paz, p. 50)

*

Os projetos aqui apresentados possuíam estruturações as mais diversas, tendo em vista que aos grupos de licenciandos que os confeccionaram não era oferecida uma estrutura muito estrita de composição, contanto que explicitassem tema, objetivos, nível de ensino, metodologia e atividades (conteúdo, objetivos, estratégias, desenvolvimento e avaliação). Os quatro primeiros itens ficaram, nesta edição final do trabalho, incluídos na Introdução e a sequência de atividades, sob a rubrica Sequência Didática, com as atividades numeradas. Esta é a configuração formal de quatro dos cinco projetos publicados.
O texto inicial da revista, “Por um outro ensino”, de Dirceu Villa e João Vieira Jr., com estrutura diferente da dos demais, na verdade se apresenta como o relato do projeto desenvolvido por ambos os licenciandos numa escola do estado, tendo sido mantida sua forma original: uma edição mais “didatizada” prejudicaria a elegância da linguagem de seus autores e a fluidez do texto (além do mais, diga-se a bem da verdade, seus autores não autorizaram tal intervenção). Ao decidir abrir a edição com um texto transgressivo e em essência pouco “didático”, é porque compartilhamos da posição manifestada por ambos de que mudanças urgentes na relação professor-aluno e na formação do professor são necessárias, no sentido de torná-los, justamente, professores e alunos, mais livres de uma cultura “canônica” e, sobretudo, de um “ensino canonizado”. Nesse projeto, Dirceu e João enfatizam a surpreendente criação poética de alunos considerados “casos perdidos”.
Outro projeto também colocado em prática na escola é o de Mara Lucia Faria Costa, “Simbolismo e Impressionismo: um apelo aos sentidos”. Este trabalho começou com o grupo em sala, mas ao ir para o estágio e ter a oportunidade de colocá-lo em prática, Mara se viu obrigada a reformulá-lo inteiramente; assim, tendo se perdido o projeto coletivo, optamos por publicar o individual. Para colocá-lo em prática, a autora aproveitou um material que se encontrava esquecido no armário da diretora, um conjunto de reproduções de pinturas do impressionismo, e com ele desenvolveu o projeto relacionando poesia, artes plásticas e música. Tais relações são muito profícuas para o aluno, que vive mais dentro de uma iconosfera povoada por imagens efêmeras da mídia e sons contemporâneos. Aproveitar o encanto da figura e da música, provindas no entanto de uma outra esfera da cultura, age como importante fator de sedução e empatia e contamina com isso também a poesia simbolista, cujas metáforas às vezes se mostram herméticas para o jovem. A ênfase do trabalho recaiu sobre as “sugestões”, que é uma instância pouco mensurável em termos de aprendizagem, mas fundamental para o aguçamento da sensibilidade e para a abertura a novas relações e possibilidades artísticas.
O projeto “Poesia marginal da década de 70” oferece a possibilidade de, como o primeiro, promover uma vivência poética entre os alunos. Aproveita as características da poesia da chamada “geração 70” e suas formas de produção e divulgação “alternativas” ao esquema mercadológico de massa para propiciar aos alunos uma criação poética mais livre ao mesmo tempo em que é capaz de mobilizá-los de um jeito vitalizado, lúdico, permitindo também produzir arte a partir de suportes e materiais menos “nobres”, como se propugna, de resto, desde as vanguardas européias e o modernismo brasileiro.
Os outros dois projetos são, pode-se dizer, mais “didáticos”, no sentido de que recorrem a práticas escolares mais convencionalizadas (ainda que de uma tradição recente): como o varal de poesia ou a abordagem de poemas e letras de música com destaque para a comparação de conteúdo. Com procedimentos didáticos familiares aos professores o “Oficina de poesia” toma o cuidado de não torná-los contudo separados dos procedimentos que a poesia requer, como não desvinculá-los do sentido e da interpretação bem como da leitura fruidora. O último projeto, “Música e poesia”, talvez seja o mais inacabado de todos: o projeto inicial era enorme e desenvolvia de modo extenso mas pouco significativas as comparações entre música e poesia; com muitos cortes, a edição final manteve as atividades com apenas três pares de poemas/letras, manteve-se os outros dois pares como sugestão somente, além de eliminar muito da biografia e comentários históricos, pois acredita-se que o professores e alunos possam fazer disso uma pesquisa bem mais interessante. O projeto foi indicado para publicação principalmente em razão das boas seleções de obras, que oferecem possibilidades inusitadas e ricas de comparação, ainda que vá exigir do professor que a adotar um trabalho intenso de reflexão e planejamento.
Esses projetos nasceram de idéias compartilhadas, de projetos anteriores, de embriões de projetos ou idéias secundárias e decerto ganharão variações nos futuros projetos a serem realizados na disciplina de MELP, são temas que possibilitam infinitas variações. Isso vale também para o professor em exercício que for aproveitar os trabalhos aqui apresentados. As idéias são bens coletivos, das quais nos apropriamos. Portanto, não há nenhum problema em se adaptar uma proposta à realidade de determinada escola ou sala de aula, nem o professor que o fizer deverá se sentir em débito com a produção alheia. Só não queremos que sejam desvitalizados, desvinculados de sentido, reduzidos a um conteúdo mecanizado.

Neide Luzia de Rezende
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Música e Poesia

20:49
Alison Paulo da Luz
Cibele Cesário da Silva
Edvane Rubim Soares
Ibis Natalia do Nascimento
Lucinara Chessa
2004


RESUMO
Partindo do pressuposto de que a música desperta o interesse do aluno e o leva a uma maior interatividade com o objeto a ser trabalhado em sala de aula, apresentamos aqui uma proposta de associação do poema à música. O foco do trabalho são os poemas, de autores e épocas variados, que, relacionados a músicas da atualidade, têm o objetivo de despertar a atenção dos alunos de 8ª série para as relações entre os diferentes contextos, a partir do trabalho comparativo. Seria uma maneira de aproximá-los do universo literário mais “adulto” e erudito, partindo de suas referências contemporâneas mais – por assim dizer – juvenis e massificadas.

Introdução

“A arte não é a verdade. A arte é uma mentira de imitar a verdade da realidade”.
Pablo Picasso

A literatura mais canônica requer que o estudante possa perceber o texto em suas diversas camadas de significação, que ele reflita sobre essas possibilidades e que consiga interpretar o texto a partir de seus referenciais, mas também dos referenciais oferecidos pelo professor, que certamente trará para a sala uma abordagem do texto moldada por outras leituras críticas. É um desafio motivar o aluno à fruição do poema e também inseri-lo numa perspectiva de aprendizagem, ou seja, de um saber literário que incorpore a tradição e a técnica.
A escolha de ambos os gêneros, poema e música, portanto, se justifica a nosso ver porque a música, estando mais próxima dos alunos, traz uma variante mais acessível da língua e da cultura, mais atraente, sedutora, num primeiro momento. Não situamos essa variante apenas num nível lexical, mas também sintática e, sobretudo, sonora, uma vez que, além dos termos familiares ao vocabulário corrente dos alunos, há uma configuração frasal em geral mais simples que a do poema, e há também o ritmo e a melodia, que falam mais diretamente à sensibilidade porque mais familiares e inscritas no universo cultural do jovem.
Assim, será possível, acreditamos, propiciar aos estudantes várias atividades de aquisição e interpretação da língua, tanto em sua modalidade oral como escrita, além dos conhecimentos referentes aos gêneros poéticos.
Na introdução do livro O ser e o tempo da poesia, de Alfredo Bosi, José Paulo Paes afirma que o “ser da poesia” é a imagem, que busca aprisionar a alteridade estranha das coisas e dos homens; é o som no signo, a figura do mundo e a música dos sentimentos recuperadas via linguagem; é o ritmo da frase do discurso poético, a imagem das coisas e movimento do espírito - enquanto o “tempo da poesia” é a resposta dos poetas ao estilo capitalista e burguês de viver.
A partir de um trabalho baseado mais na espontaneidade e nas percepções, queremos nos desafiar a levar aos alunos maneiras simples de interpretar o que está obscuro atrás dos poemas e deixá-los expressar o que sentem.
Neste projeto, vamos nos deter mais em três poemas relacionados a três músicas, estimando em média três a seis horas/aulas para cada tópico, o que pode ser posto em prática em uma ou duas semanas aproximadamente, intercalando-se com os outros conteúdos de português. Os tópicos da sequência didática não serão aqui separados por aula, apenas dividiremos em Atividades, ficando a cargo do professor decidir a quantidade de aulas/hora que empregará em cada uma.
Quanto ao público-alvo, acreditamos que vale para as séries do ensino fundamental II, só variando a abordagem, mais ou menos complexa.

SEQUÊNCIA DIDÁTICA

TÓPICO 1

Atividade 1 : Leitura do poema, audição da música e comentários
Música: “Geração Coca-Cola” – Legião Urbana
Poema: “Ode ao Burguês” – Mário de Andrade
O professor inicia a atividade lendo o poema com os alunos, em voz alta, em voz baixa, uma, duas, três vezes, até ele se tornar mais familiar, até ele ser “sentido”. Para a música, é sempre bom reservar um bom aparelho e pedir silêncio para que as condições da audição sejam adequadas.
Antes de qualquer análise do poema ou da música, é imprescindível que se comente ambas as obras.
É importante situar o poema no momento histórico para que, mais adiante, na conclusão, possamos apresentar o movimento literário, o Modernismo. Também será a ocasião de discutir palavras e imagens estranhas, tudo devendo ser explicado pelo professor, mas partindo da percepção dos alunos, de suas dificuldades, perguntas, estranhezas. Pode-se dizer que se trata de uma “vivência” do poema, um contato maior com matéria (o assunto do poema) e com o material (a forma do poema).
Só num segundo momento é que o poema sairá da vivência dos alunos para o plano da análise do texto propriamente, situado no seu momento da história.
Alfredo Bosi (2000, p. 9) afirma:
“Contextualizar o poema não é simplesmente datá-lo, é inserir as suas imagens e pensamentos em uma trama já em si mesma multidimensional: uma trama em que o eu-lírico vive ora experiências novas, ora lembranças de infância, ora valores tradicionais, ora anseios de mudança, ora suspensão desoladora de crenças e esperanças. A poesia pertence à História Geral, mas é preciso conhecer qual é a história peculiar imanente e operante em cada poema”.
“Ode ao Burguês” é um poema de Mário de Andrade incluído na obra Paulicéia Desvairada, publicada em 1922, e causou muita polêmica em sua época; também, para o olhar de hoje, mostra-se bastante esclarecedor para entender os motivos que levaram autores como Mário de Andrade a participar ativamente do movimento Modernista. A música “Geração Coca-Cola” foi composta mais de meio século depois por Renato Russo e cantada pela banda Legião Urbana, que os alunos conhecem e gostam muito. A banda foi uma das mais influentes no comportamento dos jovens na década de 1980 e conquistou uma legião de fãs.
Assim como o Legião Urbana buscou pela música expressar a angústia e a revolta contra nossa sociedade, que, diziam, se deixava dominar pelos norte-americanos, Mário de Andrade em seu poema “Ode ao Burguês” expõe com sarcasmo a revolta contra o burguês explorador do seu tempo. Nesse poema, se evidenciam experiências ousadas, como versos livres, imagens audaciosas e inesperadas e uma crítica social incomum na poesia de então.
Provavelmente os alunos se sentirão mais à vontade para discorrer sobre a letra da música uma vez que ela faz parte do repertório deles, mas não se furtarão a estabelecer comparações com o poema.
Ao final desta aula introdutória, os alunos devem levar para casa a cópia escrita da poesia e da música para lerem atentamente e virem mais preparados para a próxima atividade, que será interpretativa.


Atividade 2 - Estudo do poema e da música dentro da história
A) Relação dos autores com a História
B) Relação da poesia e da música com a História
C) Função social da poesia e da música dentro do contexto histórico
D) Semelhanças contextuais entre a música e a poesia

A) Mário de Andrade (1893-1945) era um moderno, mas um moderno diferente, não vivia citando avanços, mas realizou rupturas estruturais no modo de fazer poesia – “Somos primitivos da era moderna – o passado é lição para se meditar, não para se reproduzir”. Já Renato Russo (1960-1996), o compositor da música “Geração Coca-Cola” e integrante da banda Legião Urbana incutia um caráter social a algumas de suas músicas, que chegava aos garotos muito jovens, seu público mais fervoroso. A biografia de ambos os autores pode ser pesquisada: a de Mário nos livros e na internet, a de Renato Russo sobretudo na internet. Essa pesquisa certamente trará aos alunos, por meio dos hiperlinks, conhecimentos diversos sobre os contextos desses autores e seria importante que o professor concedesse um tempo para que os alunos pudessem se manifestar a propósito dessas descobertas.
B) O livro em que se insere o poema, Paulicéia Desvairada, manifesta um estado de espírito eminentemente transitório: cólera que se vinga, revolta que não se esconde, confiança infantil no senso comum dos homens. A obra em si e conseqüentemente o poema trazem à tona o contexto citadino, com suas tensões e diferenças sociais. Mário viveu em um período de grandes transformações tais como Primeira Guerra Mundial, vanguardas européias, o realinhamento e reestruturação de forças da burguesia no Brasil, revoltas das classes médias e as lutas de classe contra o poder do Estado. O modo como todas essas transformações repercutiram no poeta é único e essa identidade poética que é que se deve privilegiar no trabalho com os alunos. A banda Legião Urbana criada no início dos anos 80 movimentou toda uma geração, que ficou conhecida como “Geração Coca-Cola”, devido às letras polêmicas que retratavam a situação político-cultural dessa década; a banda conquistou multidões, chegando a formar uma verdadeira legião de fãs até hoje. Renato Russo retrata sua geração à luz da dominação globalizante. Também aqui vale a pesquisa que os alunos podem fazer.
C) O poema é uma crítica à sociedade fútil burguesa da época. O próprio título pode ser entendido como uma “brincadeira” sonora feita pelo autor: o significado de “Ode” (composição poética de caráter lírico) pode ser “traduzido” por ódio, ódio aos burgueses. Em versos livres, se contrapõe às formas fixas, mais convencionais até então; as contradições do poeta acabam por constituir uma notável multiplicação de olhares e de perspectivas sobre a cidade de São Paulo que parecem se sobrepor umas às outras dando a impressão de simultaneidade. Nota-se que a crítica de Mário não é para a cidade de São Paulo, que ele ama, e sim para os seus governantes, assim como na música, o grupo Legião Urbana critica os norte-americanos, o que deve ser entendido em termos de poder dominante e não de uma crítica ao povo.
D) Ao expressar seu ódio aos burgueses da metrópole paulistana, o poema se mostra também como uma espécie de manifesto do poeta modernista contra os conservadores que se posicionavam contra o Movimento Modernista: “Quanto aos aristôs do dinheiro, esses nos odiavam no princípio e nos olharam com desconfiança. Nenhum salão de ricaço tivemos, nenhum milionário estrangeiro nos acolheu” (Andrade, 1974, p. 232). O mesmo movimento modernista que perturba a cristalização do lirismo, cria um lirismo difícil e incompleto, que representa as dificuldades e incompletudes do sujeito lírico na modernidade incipiente. Em “Ode ao Burguês”, assim como em toda a Paulicéia Desvairada, diante da paisagem citadina o poeta não registra simplesmente a face externa que seus olhos enxergam, mas procura em suas sensações, as impressões que a cidade deixa dentro dele.
Na canção “Geração Coca-Cola” do Legião Urbana há também esse tom de manifesto. No agressivo refrão “somos os filhos da revolução/ somos burgueses sem religião/ somos o futuro da nação/ geração Coca-Cola”, seu autor Renato Russo, alude ao “sistema” – o Regime Militar (chamando-o de Revolução) como responsável pela alienação dos jovens. Esta crítica irônica fica mais explícita nos versos que se referem à massificação da cultura norte-americana – os enlatados – como lixo da indústria cultural digerido pelos adolescentes programados desde pequenos. Um embrião de revolta é plantado nos versos dirigidos aos governantes: “vocês vão ver/ suas crianças derrubando reis/ fazer comédia no cinema com as suas leis”.
Essas e outras considerações podem surgir espontaneamente ou vir orientadas pelo professor.

TÓPICO 2

Atividade 1 – Ler o poema, ouvir a música e comentá-los
Música: “Brasil” – Cazuza
Poema: “Epílogos” – Gregório de Matos

Se uma noção de poesia já estiver se formando nos alunos, procede-se a uma discussão mais “teórica” sobre aspectos do poema – verso, estrofe, versos livres, ritmo... Também situar o poema e a música em seus respectivos períodos históricos e discutir como ambos os autores traduziram o momento em que viveram, apresentando semelhanças e diferenças, pois, apesar de pertencerem a séculos distantes, é possível distinguir em ambos uma visão do Brasil que – sim – possui pontos em comum.
O poema de Gregório de Matos tem um vocabulário em desuso para o jovem de hoje, o que não significa que seja ininteligível. Mostrar isso aos alunos, as variantes históricas da língua, e levá-lo a ter contato com esse tipo de linguagem seria uma maneira de enriquecer o repertório deles e de desmistificar o que, muitas vezes, é tomado como impossível para alunos da 8ª série. Claro que não se fará uma análise profunda, considerando-se a complexidade constituinte da poesia gregoriana e os sucessivos jogos de linguagem utilizados por Cazuza. A intenção é interpretar ambos os textos de forma a trabalhar com os alunos a capacidade de extrair elementos sobre os alcances da poesia nesse trabalho comparativo.

Após a leitura do poema e audição da música, podemos começar apresentando os autores:

• Gregório de Matos: poeta do século XVII (1636-1713), que viveu no período colonial no âmbito do movimento chamado de Barroco. Português, Gregório residia na Bahia, cujas questões políticas e sociais serão tema de sua poesia. Era conhecido como “Boca do Inferno” justamente pelas críticas acirradas dirigidas ao clero, nobreza, escravos, etc., ou seja, não poupava ninguém. Gregório foi o primeiro poeta brasileiro a expressar critica e sarcasticamente um sentimento nacional, característica também muito presente em “Brasil” de Cazuza.
• Cazuza: poeta e músico do século XX (1958-1990), marcou o rock nacional nos anos 80. Inicialmente, pertencia ao grupo musical Barão Vermelho, posteriormente, partiu para a carreira solo. Viveu em um período de grande turbulência política, no final da ditadura militar, quando lutava pelas “Diretas Já”. Cazuza também não excluía ninguém em suas críticas. Caracterizado como um espírito irreverente, viveu intensamente, até contrair o vírus da AIDS. Assim como Gregório, expressava em suas músicas sua indignação quanto aos problemas do país, marcado pela fome, miséria, corrupção, exploração da classe dominante, etc. Suas letras falavam de dores, paixões e sofrimentos, mas foi com o disco Ideologia que Cazuza divulgou mais assuntos relacionados a questões sociais.

A poesia possui uma linguagem que combina arranjos verbais próprios como processos de significação pelos quais sentimento e imagem se fundem em um tempo denso, subjetivo e, ao mesmo tempo, histórico.
A música é a arte de coordenar fenômenos acústicos para produzir efeitos estéticos. Como todas as artes, a música é patrimônio comum da humanidade. Quando associada à poesia, na canção, é uma das formas mais populares de arte. Na verdade, a poesia surgiu com os gregos, simultaneamente com a música, a dança e o teatro, que buscam realizar, dentro dos limites da linguagem rítmica, uma síntese de pensamento e sensibilidade. São inúmeras, entretanto, as variantes do conceito de poesia.

Atividade 2 – Estudo do poema e da música dentro da história

“A poesia resiste à falsa ordem, que é, a rigor, barbárie e caos, esta coleção de objetos de não-amor. Resiste ao contínuo harmonioso pelo descontínuo gritante, resiste ao descontínuo gritante pelo contínuo harmonioso. Resiste aferrando-se à memória viva do passado, e resiste imaginando uma nova ordem que se recorta no horizonte da utopia”.
(Carlos Drummond de Andrade)

A) Relação dos autores com a História
B) Relação da poesia e da música com a História
C) Função social da poesia e da música dentro do contexto histórico
D) Semelhanças contextuais entre a música e a poesia

A) Relação dos Autores com a História
Gregório de Matos Guerra nasceu e formou-se em Direito em Portugal. Transferiu-se para o Brasil vivendo como fidalgo, porém convivendo com várias camadas da população. Conforme dito da aula anterior, o Brasil ainda estava sob o jugo português, apesar da crise que se instalava paulatinamente sobre a Colônia. O comércio colonial estava cada vez mais defasado, emergindo uma classe poderosa, ávida por dinheiro e poder, a burguesia. Esta classe agrava ainda mais essa crise e tirando o máximo de proveito dela. Gregório, apesar de pertencer à nobreza percebia os problemas da Colônia, a exploração, corrupção e suborno.
“Ao lado da economia agrícola que até então dominara, se desenvolve a mobiliária: o comércio e o crédito” e, com isso, passa a haver uma “disputa” entre os proprietários rurais em crise e a burguesia crescente. Ambos pertencem à classe dominante, defendendo seus próprios interesses e explorando o povo cada vez mais pobre, ou seja, nessa disputa pelo poder, político e econômico, quem perde é a classe menos favorecida. Conforme afirmou Alfredo Bosi, em Dialética da Colonização, na poesia de Gregório de Matos “o que está em jogo (...) é (...) uma rija oposição estrutural entre a nobreza, que desce, e a mercancia, que sobe”.
O Brasil de Cazuza, por sua vez, saía de um longo ciclo ditatorial e vivia um clima de democracia ainda incipiente, mas suficiente para liberar as energias contidas. Cazuza desempenhou um papel importante nesse processo.
Cazuza nasceu e morreu no Rio de Janeiro, e acompanhou o período da ditadura militar e campanha para as “Diretas Já”. Com a morte de Tancredo Neves, o país passa a viver novamente na expectativa. Sobe ao poder José Sarney que “afunda” ainda mais o país, marcado pela eterna recessão política e econômica. E é nesse cenário que Cazuza comporá suas músicas.

B) Relação da Poesia e da Música com a História
“Epílogos” – Gregório de Matos - A obra poética de Gregório de Matos é composta de duas vertentes: uma satírica (composição poética que ataca de forma incisiva ou ridiculariza instituições, costumes e/ou idéias contemporâneas) e outra lírica de fundo religioso e moral. Mostrar aos alunos que o poema a ser analisado pertence à primeira vertente e é estruturado de modo a observar o jogo pergunta-resposta mais conclusão.
Lembrar que o poema se insere no sistema colonial, onde cada passo da seqüência corresponde a instituições que organizam a sociedade. Há várias vozes no poema contestando e questionando, compondo um debate. Para que os alunos percebam esse tom de debate, propor a eles a leitura alternada em voz alta.
“Brasil” – Cazuza – Uma das músicas de maior sucesso de Cazuza, “Brasil” está inserida no disco Ideologia.. O Brasil encontrava-se, mais uma vez, afundado na recessão e com um presidente não eleito pelo povo após anos de ditadura militar. “Brasil” retrata de forma contundente o novo (ou velho?) cenário político que se configurava.

C) Função social da poesia e da música dentro do contexto histórico
Mediante o estilo pergunta-resposta, o poeta denuncia problemas sociais. É importante observar aos alunos que muitos assuntos tratados ainda são atuais, revelando a persistência dos problemas, sobretudo, em relação à corrupção das instituições que deveriam zelar pelo bem público. Assim, os alunos podem perceber que, mesmo sendo um poema do século XVII, é possível a partir dele refletir sobre a vida de hoje, estabelecendo relações críticas entre passado e presente, para, quem sabe, projetar um futuro.

D) Semelhanças entre Poesia e Música
Conforme já foi dito anteriormente, tanto o poema quanto a música denunciam problemas sociais e políticos: corrupção, suborno e exploração da classe dominante. Contudo, no poema de Gregório temos essa denúncia de forma mais explícita se considerarmos que o eu-lírico nomeia cada instituição responsável pela degradação do país. Já em “Brasil” isso ocorre de forma indireta, pois o eu-lírico utiliza-se de metáforas para se referir a essas instituições.
Ambos deixam bem claro que o capital/dinheiro é que determina a “hora e a vez” do indivíduo: “o meu cartão de crédito é uma navalha” (“Brasil”); “Quem causa tal perdição?..... Ambição.” (“Epílogos”). O povo, alienado e ignorante, é incapaz de mudar esse quadro, aceitando a situação passivamente: “Será que é meu fim ver TV a cores na taba de um índio programada só para dizer sim?” (“Brasil”) ou em: “a pagar sem ver toda essa droga que já vem malhada antes d’eu nascer” (“Epílogos”)
Tanto em um quanto no outro temos o uso do termo “negócio”. No poema de Gregório, fica bem claro que por causa do comércio (negócio) a Bahia encontra-se em estado de decadência, porque a classe dominante rouba (socrócio) tudo que lhe pertence, fazendo com que o povo fique cada vez mais pobre (“Quem a pôs nesse socrócio?....... Negócio.”). Já em “Brasil” o eu-lírico trata de maneira indireta: “Quero ver quem paga pra gente ficar assim”, ou seja, quem nos explora para que fiquemos tão pobres e miseráveis?. Por isso, o eu-lírico pede: “Brasil, qual é o teu negócio, o nome do teu sócio?”. E quando ele diz “confia em mim” sugere que o eu-lírico que ser incluído nesse sistema a fim de se beneficiar também, mas isso só será possível através do suborno.
Tanto no poema quanto na música, o tom de pessimismo é bastante marcado, pois só através de ações ilícitas consegue-se ser alguém neste país. Na música de Cazuza, o eu-lírico vai ainda mais longe, se considerarmos que não há nenhuma “brecha” para que tal quadro mude. No poema de Gregório, há a conclusão bem clara de que os dirigentes não querem e não vão mudar o país (“A Câmara não acode?...... Não pode./ Pois não tem todo o poder?..... Não quer.”). A presença de perguntas no poema e na música supõe um tom de desafio e indignação com a situação.
Diante de tais considerações, pode-se mostrar aos alunos problemas que o Brasil carrega desde o descobrimento: a renda concentrada, a falta de acesso a bens que, entretanto, poucos desfrutam plenamente.

3º TÓPICO

Atividade 1 – Leitura, audição, interpretação e produção de texto

Música: Homem na estrada – Racionais MC’s.
Poema: Operário em construção – Vinicius de Moraes

O objetivo deste primeiro momento é despertar os alunos para a reflexão sobre os problemas atuais; utilizar o debate tanto para este momento como para a seqüência das próximas aulas, uma vez que este gênero possibilita o desenvolvimento da capacidade de argumentação:

“Tendo posições diferentes em relação à questão colocada, porém não necessariamente contraditórias, cada participante do debate pressupõe nos outros, participantes ou ouvintes, a faculdade da razão e a vontade de encontrar através do raciocínio uma solução coletivamente aceitável para a questão. (...) O debate aparece, assim, como a construção conjunta de uma resposta complexa à questão, como instrumento de reflexão que permite a cada debatedor (e a cada ouvinte) precisar e modificar sua posição inicial” (Schneuwly, Dolz, 1999, p. 12).

Além dessa qualidade intrínseca ao gênero, acreditamos que haverá maior participação dos alunos e a aula será mais dinâmica.
Ao ouvir a música, o aluno poderá reconhecer nela fatos comuns ao seu cotidiano, porém, em uma realidade “inventada ou recriada” pelo autor.
Em primeiro lugar, discute-se a biografia dos autores da música, cuja pesquisa deverá ter sido previamente solicitada aos alunos, já que são eles que conhecem e sabem como procurar as informações sobre os integrantes da banda. Cabe ao professor organizar e selecionar, para efeito do trabalho escolar, as informações que os alunos trouxerem. Por se tratar de um grupo muito popular na periferia, os alunos têm muitas informações e isso já os estimularia a emitir suas opiniões. O mesmo ocorreria com a leitura e audição (por possuir uma gravação com Vinicius de Moraes) do poema O operário em construção e, logo após este momento, fazer uma breve exposição da biografia do autor.
Para a biografia do grupo de rap Racionais selecionamos o seguinte texto eletrônico: http://www.mikkolee.hpg.ig.com.br/racms_2.htm

Atividades 2 e 3 – Produção de Texto
Como tarefa para a aula seguinte, podemos pedir que escrevam o que eles pensam de cada uma das obras. Como eles enxergam a opinião de cada autor, tomando como base o texto e a música. Claro que os alunos já devem ter uma noção de organização de um texto opinitivo. Mas lembramos também que a prática do comentário pode ser exercida a partir de uma forma textual livre. Os textos redigidos podem ser lidos na aula seguinte. Esta atividade dá chance ao professor de saber como está a expressão, a argumentação e a produção de textos dos seus alunos.

Atividades 4 e 5 – Análise da Música e Poesia
Nesta aula poderíamos falar sobre as origens e contextos em que foram escritas a música e a poesia.
Sobre O homem na estrada é interessante expor as origens do rap e principalmente da ramificação da qual os Racionais fazem parte: o movimento hip-hop. Não esquecer que sobre rap e hip-hop os alunos provavelmente sabem mais que o professor. Para evitar que a atividade se torne desnecessária e negativamente escolarizada (com o professor polarizando as explicações), deixar que os alunos apresentem suas considerações. O papel do professor pode ser muito importante nesse momento ao organizar as intervenções, apontar semelhanças e as diferenças entre os pontos de vista, mostrar a riqueza da diversidade das apreensões. Muitas informações podem ser obtidas nos seguintes textos:
http://www.geocities.com/gangstarraper/raporigem.htm
Quanto a Vinicius de Morais, devido a sua grande obra e aos diversos movimentos em que esteve envolvido, consideramos mais importante lembrar quando ele escreveu O operário em construção, cuja contextualização pode ser encontrada no site
http://www.releituras.com/viniciusm_bio.asp

As diferenças entre a linguagem oral e escrita é um outro ponto que pode ser abordado, sendo bem apropriada a atividade em que os alunos transcrevem a música (comparada ao poema, é mais próxima da língua oral pelas marcas que possui) para uma forma em prosa, uma prosa poética, por exemplo, ou, ao contrário, um texto jornalístico.
E, por fim, discutir com os alunos como ocorre a distribuição das rimas e sua classificação, conforme a adotada por Said Ali (Versificação em língua portuguesa) como um primeiro passo para o estudo de recursos formais da composição poética.

OUTRAS SUGESTÕES

I.
Música: “Índios” – Legião Urbana
Poema: “Romance I ou da Revelação do Ouro” – Cecília Meireles
O Romance I ou da Revelação do Ouro, em Romanceiro da Inconfidência, primeiro texto da obra, foca a ganância do homem branco e o papel do índio durante esse acontecimento histórico. O poema possui fortes marcas épicas, pois trata da constituição de um povo, situando-se no presente histórico. Índios, da banda Legião Urbana, expõe de maneira mais direta opapel do índio na sociedade, é uma espécie de lírica argumentativa.
Sobre o Período histórico, o professor pede que os alunos leiam a música e, em grupos de três ou quatro alunos, discutam e cheguem a uma conclusão a respeito do período histórico de que a canção trata. Se o professor considerar seus alunos ainda imaturos para desempenhar a tarefa, sugerimos que sejam oferecidas e discutidas opções de respostas. Ex: a) Independência dos EUA; b) 1929; c) os dias atuais; d) colonização do Brasil. Essa atividade servirá como base para que os alunos e adquiram noções de temporalidade (no caso, os verbos no passado da canção e os verbos no presente no poema). Também é possível lidar com as funções da linguagem, sendo as marcas de emissor e destinatário muito marcantes tanto no poema quanto na música.
Comparações que podem ser estabelecidas: ambição desregrada; a natureza envergonhada; injustiça para com os índios.

*

II.
Música: “A Minha Alma” – O Rappa
Poema: “Canção do Exílio” – Gonçalves Dias
Os grupos elaborarão apresentações a partir das semelhanças, diferenças, enfim aspectos levantados a partir do estudo e comparação entre a música e o poema. Essas apresentações serão elaboradas de diferentes formas, à escolha de cada grupo: dramatização, seminário com utilização de recursos gráficos, visuais e/ou auditivos, ou ainda de acordo com a criatividade da turma pode ser sugerida a criação de paródias, tanto da música quanto do poema que serão passados aos demais colegas através de dramatizações e consequente interpretação de seu significado. Sugere-se a maior quantidade possível de atividades escritas.

BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Mário de. “O Movimento Modernista”. In: Aspectos da Literatura Brasileira. 5ª edição. São Paulo, Martins, 1974.
ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. Edusp – São Paulo, 1987.
ARENDT, Hannah. “A Crise na Educação”. In: Entre o Passado e o Futuro. São Paulo. Perspectiva, 2002.
BAKHTIN, Mikhail. “Os Gêneros do Discurso”. In:- -------. Estética da Criação Verbal. (Trad.) São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo da Poesia. Companhia das Letras, São Paulo, 2000.
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização, São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo, Cultrix, 1996.
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas / FFLCH-USP, 1996.
ESPÍNOLA, Adriano. “Redescoberta do Brasil”. In: Revista Cult 41. São Paulo: Editora Krao, dezembro/2000.
INTERNET. http://www.letrasdemusicas.com.br
LAFETÁ, João Luiz Machado. “A Consciência da Linguagem”, 1930: “A Crítica e o Modernismo”. São Paulo, Duas Cidades, 1974. “A representação do sujeito lírico na Paulicéia Desvairada”. In: BOSI, Alfredo. Leitura de Poesia. São Paulo, Ática, 1996.
MATOS, Gregório de. Poemas Escolhidos. São Paulo: Círculo do Livro, s.d. Introdução de José Miguel Wisnik.
NICOLA, José de. Língua, Literatura & Redação. [Edição revisada e ampliada]. São Paulo: Scipione, 1998.
RONCARI, Luiz. Literatura. Dos Primeiros Cronistas aos Últimos Românticos. SP: EdUSP/ FDE, 1995.
SCHNEUWLY, B., DOLZ, J. Os gêneros escolares: das práticas de linguagem aos objetos de ensino. Revista brasileira de educação. Mai/Jun/Jul/Ago 1999, nº 11.
SÓ, Pedro. Revista ShowBizz. São Paulo: Abril, Edição 145, agosto/1997.
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Oficina de Poesia

20:48
Adriana Moreira
Carolina Yokota
Letícia Fonseca
Nancy Hino
Teresa Raquel
2002

Resumo
Este projeto tem como objetivo despertar o interesse dos alunos por textos poéticos, tanto em versos quanto em prosa. Expõe algumas das características que estruturam o texto poético, como as noções de rima, verso e estrofe, apresentações de poemas de autores destacados no cenário poético do Brasil, pesquisas e leituras de poemas, análises e interpretações, criação e escrita de poemas e recitação. O público alvo para esta oficina são alunos da quinta série, embora, mediante adaptações, ela possa vir a ser utilizada em outras séries.

Introdução
A elaboração desse pequeno projeto tem em vista dois objetivos: o primeiro, aqui não no sentido mais relevante, é fazer com que os alunos tenham um contato diferenciado com a poesia, de modo a fugir daqueles exercícios de dissecação da estrutura do poema ou mesmo daqueles questionários que alguns livros didáticos fazem questão de colocar logo após os poemas. A idéia é que se trabalhe com o aluno de uma maneira mais livre, mais lúdica e menos escolarizada, por meio de atividades em se tenha a possibilidade de fazer inúmeras leituras sem se preocupar com exercícios chatos que porventura poderiam vir depois delas; em que tente descobrir os significados e sentidos de um poema sem achar que é a professora que detém a única interpretação correta; ou ainda, em que se se possa escrever poemas sem que estes sejam revestidos pelo caráter da “lição para nota” ou “lição de casa”.
O segundo objetivo é fazer com que os alunos se sintam motivados a ler cada vez mais, e por conta própria, textos poéticos; procurar estimulá-los por meio do prazer que a leitura de poemas pode proporcionar; buscar poemas na biblioteca, na internet, nos sebos, nas livrarias, etc.
Nesse sentido, para não correr o risco de perder de vista tais objetivos, é bom ter sempre em mente algumas idéias sugeridas por Hélder Pinheiro: “Não se fixar, de modo absoluto, no que deu ou não deu certo em experiências anteriores; não buscar resultados imediatos e visíveis – nesse campo, há coisas sutis que nem sempre vemos; e ter constância no trabalho – é melhor ler diariamente um poema com seus alunos do que realizar um ‘festival de poesia’ e no resto do ano ela ser esquecida”.

SEQÜENCIA DIDÁTICA

Atividade 1 – Conversa ou pesquisa sobre poesia
A aula se inicia com uma conversa ou pesquisa sobre o que os alunos conhecem de poesia: gêneros, autores, títulos e formas de expressão. A interação professor-aluno deve ser bastante efetiva. A pesquisa pode ser feita durante a aula e, conforme os alunos relatam, o professor registra as respostas na lousa ao mesmo tempo em que explica e exemplifica as idéias levantadas.
O professor pode perguntar se alguém sabe algum poema de cor e se gostaria de recitá-lo. Algumas respostas esperadas dos alunos são as cantigas de roda, versinhos, poemas, textos poéticos, letras de música.
Durante esta pesquisa ou conversa, devemos definir poema e poesia e também trabalhar a função e difusão da poesia. Ou seja: o que ela significa na vida dos alunos , o que eles pensam sobre este gênero e como têm contato com ele. Nesta aula o professor também deverá trabalhar o conceito de linguagem poética, a exploração do sentido conotativo das palavras e a utilização das figuras de linguagem.
Para a aula seguinte, o professor deverá pedir para que os alunos pesquisem em suas casas formas poéticas, do dito popular, da quadrinha, ao soneto, à poesia contemporânea, com rimas, sem rimas.

Atividade 2 – Apresentação e discussão do material pesquisado
Os alunos apresentam o material pesquisado. É o momento em que o professor buscará relacionar os textos e informações trazidas pelos alunos, estabelecendo semelhanças e contrastes.

Atividade 3 – Figuras de linguagem
Através de exemplos dos próprios poemas, prossegue-se com o trabalho inicial de reconhecimento das modalidades poéticas, agora se detendo nas figuras de linguagem.
Entretanto, antes do trabalho com as figuras de linguagem, um rápido jogo de junção de palavras estranhas: juntar palavras estranhas semanticamente, com sentidos aparentemente afastados, para se descobrir o poder sugestivo e inventivo da linguagem, produzindo novos significados na experimentação. Por exemplo, “Amor é fogo”, “Inventa uma lua azul”, “Imensa é a missão dos teus cabelos”, “Só, palavra comprida”, “a vida parou ou foi o automóvel”, “o beijo não vem da boca”, “respiro o sol e adormeço enluarado”, “foi mais que solidão, foi um coice da noite”, “sou menino-passarinho com vontade de voar”, “apago estrelas”. O livro de Gianni Rodari, Gramática da fantasia, traz várias sugestões de trabalho-brincadeira dessa ordem

Atividade 3 – A rima
Esta aula tem início com a apresentação de uma das características que estruturam o texto poético: a rima. Para introduzir o tema, o professor escreve uma palavra na lousa, por exemplo: papel e pede para que um aluno se levante e escreva outra palavra que rime com papel, por exemplo: mel. Este aluno deve escrever outra palavra, não necessariamente com a mesma rima, para que os outros alunos façam a rima. Teremos então algo assim:
Papel Semente Carro
Mel Dente Barro

Depois dessa introdução, o professor apresenta alguns poemas para discussão e leitura, por exemplo:

Soneto da Separação
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
De repente, não mais que de repente.
Fez-se da vida uma aventura errante
(Vinícius de Morais)


Autopsicografia
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
(Fernando Pessoa)

É interessante mencionar que antes da invenção da imprensa, a rima tinha um papel importante porque permitia a memorização mais fácil dos versos. Como a música, o poema requer uma seqüência de sons e que se acompanhe uma cadência rítmica na leitura. O ideal é que não se haja regras fixas para a formação do ritmo e que ele apenas flua para uma boa significação.
No poema de Bandeira que segue abaixo, a intencionalidade do poeta agiu dando um encadeamento leve e contínuo, como as ondas do oceano, e tornando dinâmica a cadência rítmica do poema. Isso acontece porque os sons se alternam e se sucedem, estabelecendo ao mesmo tempo a intensidade (forte/fraco) e a aceleração (lento/rápido) dos versos. O mais importante aqui é fazer o aluno perceber que, geralmente, o bom poema apresenta um ritmo agradável à leitura.
É interessante fazê-los ler também o poema “Ritmo” de Mário Quintana, atentando para a repetição das estruturas e deixá-los perceber que isso sugere os sons da vassoura, da escova e da roupa sendo lavada.
A onda
a onda anda
a onde anda
a onda?
a onda anda
ainda onda
ainda anda
aonde?
aonde?
a onda anda
(Manuel Bandeira)

Ritmo
Na porta
a varredeira varre o cisco
varre o cisco
varre o cisco

Na pia
a menininha escova os dentes
escova os dentes
escova os dentes

No arroio a lavadeira bate a roupa
bate a roupa
bate a roupa
até que enfim
se desenrola
toda a corda

e o mundo gira imóvel
como um pião
(Mário Quintana)

Atividade 4 – Verso e estrofe
Esta aula privilegia a apresentação dos conceitos de verso e estrofe. É interessante esclarecer neste momento que cada linha do poema constitui um verso e o conjunto deles que, em geral, apresenta um sentido completo, formam uma estrofe.
O verso livre pode ser abordado como aquele que possui leis próprias, sem um ritmo predeterminado ou predefinido, no qual a metrificação obedece a um padrão mais livre, seguindo a sensibilidade do poeta e permitindo uma série de efeitos especiais não anteriormente experimentados pela poesia tradicional.
Um jogo interessante para um primeiro contato com uma estrutura semelhante é o “Cadáver Esquisito” que os escritores surrealistas praticavam como uma espécie de “escrita automática”. Uma folha em branco é passada de aluno para aluno e cada um escreve o que quiser numa linha. É importante que, quando um escreve, o seguinte não veja o que foi escrito. Assim, cada um que escreve dobra o papel de cima para baixo para que a folha vá enrolando e escondendo as frases. As frases soltas, o contraste da conexão de uma com a outra, a ausência de rima (os versos brancos) e a formação lúdica do texto em grupo criam uma atmosfera que lembra a criação poética. Após o exercício, a leitura em voz alta do texto e a diferenciação com um soneto, por exemplo, podem auxiliar no entendimento. Em seguida, sugere-se a leitura do poema “Os ombros suportam o mundo” – em versos livres – para que os alunos verifiquem se há semelhanças com o texto criado.

Os Ombros Suportam o Mundo
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
(Carlos Drummond de Andrade)

Atividade 5 – “Poemas Concretos”
Nesta aula inicia-se o trabalho com poemas concretos. Para introduzir o tema, o professor pedirá aos alunos que elaborem um poema “maluco”, lançando a proposta como um desafio. Pedir para que eles criem algo totalmente novo, inusitado, que deixem perplexos aqueles que forem ler o poema.
Depois da apresentação dos poemas criados pelos alunos, o professor expõe temas criados pelos concretistas e comenta o porquê dos poemas serem apresentados dessa forma. Como, por exemplo, expor a idéia de ruptura com o modo convencional de se escrever poesia, inserindo imagens e dispondo as palavras de maneira inesperada.

Atividade 6 – Leitura em voz alta
Nesta aula, é possível explorar os diversos modos de leitura em voz alta de um poema. Inicialmente, os alunos, que podem estar reunidos em grupos ou não, receberão um poema. É possível distribuir poemas diferentes; no entanto, a atividade talvez fique mais interessante se eles forem iguais, pois assim a distinção de uma leitura para outra ficará mais contrastante. A escolha do poema dependerá do professor, lembrando sempre que, nesse caso, será melhor selecionar poemas de modalidades diversas e que alcancem a sensibilidade das crianças.
Depois disso, o professor exporá algumas maneiras diferentes de ler um poema e pedirá que os alunos escolham uma delas (eles podem até inventar outro jeito). Se quiser, o professor poderá realizar um pequeno sorteio para definir a distribuição dos modos de leitura. Algumas sugestões são: gritando, falando grosso (grave), falando fino (agudo), bocejando, gargalhando, destacando as sílabas, falando de maneira suave, de maneira zangada, cochichando, etc.
Para finalizar, os alunos escolherão o modo que mais “combine” com o poema e, caso se opte por algum poema de Augusto de Campos, poderão ouvir a leitura feita pelo próprio poeta (há um CD que acompanha o livro Viva vaia).

Atividade 7 – Seleção, leitura em voz alta e discussão em grupo de um poema
A atividade estará voltada a um trabalho mais sistemático com a leitura. Primeiramente, em duplas ou no máximo em trios, os alunos deverão escolher, dentre alguns livros de poesia que o professor selecionará anteriormente, aquele que mais os atrair. Realizadas as escolhas dos livros, o professor pedirá que o grupo selecione um poema que achar mais interessante.
A idéia central é que os alunos tenham a possibilidade de ler vários poemas e que possam discutir entre si até chegarem a um consenso quanto ao poema. Depois disso, o aluno ou o grupo, podendo fazer uma espécie de jogral, poderá ler o poema escolhido. A cada leitura, o professor pode estimular alguns comentários por parte dos alunos, questionando a respeito do porquê da escolha, se os outros grupos também gostaram, qual a parte que mais chamou a atenção, etc.
Para finalizar, a classe poderá eleger o poema mais interessante (que decerto será eleito em razão do modo de abordagem dos alunos).

Atividade 8 – Composição coletiva de um poema
Os alunos deverão se reunir em grupos de 4 a 5 alunos. Cada aluno deverá escrever, em um pedaço de papel, uma palavra. Pode ser uma palavra que eles achem bonita pela sua sonoridade, pelo seu significado, que traga alguma lembrança boa, etc. O grupo colocará as palavras em um envelope, que deve ser trocado com outro grupo.
Cada integrante do grupo, após a leitura das palavras recebidas do outro grupo, tentará escrever um poema em que todas as palavras sejam utilizadas.
No final, os alunos que desejarem, poderão fazer a leitura dos poemas realizados.

Atividade 9 – Criação individual de poemas
Após todo o trabalho com os diversos tipos de poemas, o contato com livros e as atividades já realizadas em sala de aula, os alunos devem, nesse momento, escrever seus próprios poemas.
Para isso, o professor deverá orientar que cada aluno escreva, em folhas separadas, um ou mais poemas. Nesse processo é fundamental que o professor percorra a classe relembrando aos alunos os conceitos já estudados. Deve fazer isso de forma que esses conceitos possam ser utilizados efetivamente na criação de cada aluno, mas sem que isso se torne luma camisa-de-força para a criação.
Nessa fase, o professor deverá ser solicitado para ajudar a criar rimas, a verificar a extensão das estrofes e até mesmo a ler os poemas para ver se “estão ficando bons”.
Os alunos devem ter toda a liberdade para escolher o tipo de poema: poderão criar um poema concreto, um poema rimado, um poema com versos brancos, etc.
O professor deverá participar ativamente de toda essa aula. Deve percorrer a sala passando de carteira em carteira para ver como andam os trabalhos, deve ir lendo as criações em seu processo de construção, ajudar os alunos quando for solicitado e o mais importante: não deve interferir nos trabalhos se não for convidado a isso. É essencial que os alunos sintam liberdade para criar.
Pelo menos um poema deve ser criado por cada aluno. Depois de pronto o texto, os alunos poderão ilustrar seus poemas com desenhos ou colagens, mas isso só pode ser permitido após o término do texto, para que os alunos não se dispersem da atividade principal. As ilustrações ou colagens também não devem exceder a aula (ou uma aula dobrada) dedicada a essa atividade.
Ao final da aula as crianças deverão entregar os poemas produzidos para o professor.
Fora da sala de aula o professor deverá corrigir os eventuais erros de português dos poemas.

Atividade 10 - Leitura dos poemas criados pelos alunos
Nesta aula o professor distribuirá os poemas corrigidos. Após a distribuição, deve avisar aos alunos que essa será uma aula de leitura dos poemas produzidos.
O professor deve dar aproximadamente quinze minutos para que os alunos leiam seus poemas em voz baixa e individualmente e decidam o melhor meio de fazer a leitura para o grupo. Nessa fase o professor pode ajudar os alunos lembrando-os de que os poemas devem ser lidos com o encadeamento dos versos.
Depois de prontos para começarem a ler, o professor pode dividir a leitura pelos temas dos poemas. Depois disso inicia-se a leitura. Caso haja tempo, depois da leitura individual de todos os poemas, pode ser feito algum jogral com poema produzido pelos alunos.
Após essas leituras, os alunos podem comentar sobre os poemas que mais gostaram e o professor pode chamar a atenção para algum ponto interessante da produção ou da leitura. É muito importante uma discussão ao final dessa aula para que os alunos possam ter, dos próprios colegas, um retorno de suas produções.
Ao final da atividade, o professor deve recolher novamente os poemas e deve pedir aos alunos que tragam, para a próxima aula, cola, tesoura, fita crepe e outros materiais usados em colagens.

Atividade 11 - Organização de um varal de poesia
Nessa aula, que encerra a Oficina de Poesia, os alunos irão, com a ajuda do professor, organizar um varal para a exposição de seus trabalhos.
O professor deve trazer para a sala de aula alguns metros de barbante que serão usados para pendurar as folhas com os poemas. O varal deve ser organizado de forma parecida com um varal para a secagem de roupas.
Nesse momento, as crianças devem se organizar para decidirem o melhor lugar da sala para pendurar o varal com os poemas e colam seus poemas no barbante trazido pelo professor.
Depois da colagem, o professor, com ajuda das crianças, prega o varal na parede escolhida. Também em conjunto, limpam e reorganizam a sala. Assim, é possível convidar a diretoria da escola, outros professores ou até mesmo outras classes da escola. A exposição fica a critério de cada professor e deve depender da disponibilidade de horários, do apoio do corpo diretivo e de outros fatores que envolvem a realização de eventos na escola.

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, C. Drummond de. Sentimento do mundo. Rio: Irmãos Pongetti, 1940.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
BERALDO, Alda. Trabalhando com Poesia. São Paulo: Ática, 1999. v.1
BERALDO, Alda. Trabalhando com Poesia. São Paulo: Ática, 1999. v.2
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas / FFLCH – USP, 1996.
MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas. Rio de Janeiro: Sabiá, 1946.
PAIXÃO, Fernando. O que é Poesia. São Paulo: Brasiliense, 1988.
PESSOA, F. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1986.
PIGNATARI, Décio. O que é Comunicação Poética. São Paulo: Brasiliense, 1991.
PINHEIRO, Hélder (org.). Poemas para crianças: reflexões, experiências, sugestões. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 2000.
QUINTANA, Mário. Lili inventa o mundo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983.
RODARI, Gianni. Gramática da fantasia. [trad.]. São Paulo: Summus, 1982.
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A poesia marginal dos anos 70

20:48
Mariana Bruno Chaves
Mariana Vitale T. da Silva
Norival Leme Junior
2008

RESUMO
Este projeto se propõe a trazer para a escola uma abordagem experimental da poesia, o que é amplamente possibilitado pela “poesia marginal” dos anos 70 no Brasil. Essa poesia é arte-ação-pensamento, e só mesmo uma vivência possibilita seu entendimento.


Introdução

O assunto escolhido para a elaboração do projeto foi poesia, com enfoque nos poetas marginais dos anos 70. A leitura poética não encontra lugar muito confortável nas práticas escola, além de parecer levantar uma barreira mística em torno de si, que a afasta dos alunos e dos leitores em geral.
Em princípio, o termo literatura marginal encontra um correlato direto na literatura atual, na qual se destacam nomes como Ferrez (Capão Pecado), Paulo Lins (Cidade de Deus), o poeta Sergio Vaz (Sarau Cooperifa), entre outros. A literatura marginal, da qual extraímos o projeto, é, contudo, representada por Cacaso, Paulo Leminski, Ana Cristina César, já falecidos, e, entre outros, Francisco Alvim, Chacal, que está em plena atividade com o C.E.P. (Centro de Experimentação Poética).
A diferença entre esses dois períodos homônimos começa na questão social, que repercute diretamente em suas respectivas literaturas. A geração da década de 70 eram, em sua maioria, de classe média, com boa formação acadêmica e tinham experiências culturais fora do mercado editorial formal, o qual censuravam. Logo, tiveram a necessidade de se autopublicarem – foram conhecidos também como geração mimeógrafo. Já nossos contemporâneos deste início de século XXI são de baixa renda e emergem com uma linguagem própria da periferia – com suas gírias, ortografia e assuntos, como violência policial.
Contudo, o recorte feito para este projeto limita-se aos poetas marginais da geração 70 e pode ser aplicado tanto no Ensino Médio quanto no Ensino Fundamental II. Esse recorte levou em conta o falto de ser a poesia de 70 de alta qualidade estética e, ao mesmo tempo, no interior de uma cultura pop e de contestação, o que representa um fator de identidade com o jovem, uma espécie de contestador por natureza nessa etapa da vida.

Trabalhar com poesia não é algo comum na rotina de uma escola – fato constatado nos estágios realizados em sala de aula e nas OCNEM, que chamam a atenção para isso –, pois lida-se com dificuldades de interpretação, abstração, ambigüidade, consequentemente impedindo às vezes a fruição plena do poema e o interesse do jovem.
A escolha pela poesia tem caráter declaradamente ideológico, pois acreditamos que não haja imparcialidade nos conteúdos e abordagens dentro e fora da sala de aula. E também por comungarmos da visão de Antonio Candido quando diz:

“Uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável” .

Acreditando no caráter de formação da literatura e na importância da arte para a formação do indivíduo, vemos no trabalho com a poesia um viés para um projeto que englobe competências lingüísticas sem, no entanto, ficar restrito a elas: como ampliação do repertório, aguçamento da sensibilidade, compreensão e reconhecimento do gênero, bem como sua avaliação crítica.
Contudo, antes de qualquer tipo de análise, faz-se necessário o primeiro e fundamental contato com o poema, que é a leitura desinteressada, mesmo sem reconhecê-lo enquanto gênero. Depois do contato visual e da leitura, serão propostas discussões sobre o que é poesia, sobre os poemas a serem trabalhados, a relação de poesia e espaço e por fim a escolha de poemas pelos próprios alunos para serem divulgados pela escola.

Para a elaboração e desenvolvimento deste projeto, pautamo-nos em algumas referências bibliográficas e em nossas percepções advindas das aulas de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, dos estágios realizados e, claramente, de nossa formação. As referências teóricas mais explícitas constam na bibliografia deste projeto, e acreditamos serem necessárias para o professor que pretenda aplicá-lo.


SEQÜENCIA DIDÁTICA

Atividade 1 - Placas pela escola

Para o primeiro contato com o gênero, sugerimos que a primeira atividade aconteça ao longo de uma semana e se dê fora da sala de aula.
Para isso, o professor selecionará alguns poemas marginais – aqueles que acredita instigarem mais os alunos – e preparará placas com esses poemas escritos, as quais serão distribuídas nos diferentes espaços da escola.
Essas placas podem ser feitas dos mais diversos materiais – madeira, papelão, plástico –, de acordo com o que o professor tiver disponível; os poemas podem ser impressos, escritos à mão ou colados. O interessante é que as placas chamem a atenção e os poemas fiquem em sua forma original. Quanto aos lugares a serem penduradas as placas, sugerimos que sejam também inusitados (portas de banheiro, teto, chão, espelho) e que normalmente não sejam utilizados para colar cartazes.
O objetivo dessa atividade é que os alunos vejam essas placas e leiam os poemas durante a semana, sem saber que é uma atividade da aula de literatura e, até mesmo, que se trata de poemas. Assim, na primeira aula de desenvolvimento do projeto, a maioria dos alunos já terá tido um contato com os poemas.
Enquanto as placas estiverem penduradas pela escola, é possível que os alunos interajam com elas, escrevendo, rabiscando, desenhando. Essas intervenções são bem-vindas e não deverão ser proibidas, pois poderão ser usadas no trabalho em sala de aula.
Haja vista a subjetividade da leitura e as diferentes formas de recepção dos textos, esta primeira atividade mostra-se essencial, pois a leitura e a fruição do poema ocorrerão, em um primeiro momento, sem a intervenção ou indução do professor.

Atividade 2 – O que é poesia?

Depois de as placas ficarem penduradas pela escola durante uma semana, o professor as recolhe e inicia o trabalho com o gênero em sala de aula.
A primeira atividade proposta tem como base a discussão “o que é poesia?”. Para dar início a essa discussão, o professor apresentará para os alunos o poema Anoitecer , de Raimundo Correia – poema este que se encaixa nos moldes tradicionais de rima, métrica, ritmo –, e o poema Mas, de Francisco Alvim. A partir dessas leituras inicia-se a discussão, com a pergunta “qual dos dois é poesia?”. Desta pergunta, a discussão pode tomar diversos rumos, mas a intenção é que o professor seja o mediador e paute as discussões em temas centrais e que proporcionem reflexões como: o que é arte; o que é bonito; quem decide o que é poesia/arte; para que serve a poesia, etc. Para fomentar as argumentações, o professor pode utilizar o poema Sem budismo, de Paulo Leminski, deixando, assim, um gancho para a atividade seguinte.
A discussão proposta nesta atividade não visa determinar conceitos ou dar respostas aos alunos, o objetivo é fazer com que os alunos percebam o alcance das questões e ampliem suas visões, quebrando, assim, alguns paradigmas e construindo outros. Dessa forma, o professor estará preparando os alunos para a recepção de um gênero, de uma estética amparada em diferentes parâmetros.

Atividade 3 – Placas na sala de aula

Com base nas discussões surgidas na atividade anterior, o professor trará para a sala de aula as placas com os poemas, que provavelmente já foram vistas pelos alunos. Desse modo, o professor faz a leitura dos poemas com os alunos e os discute com eles, sempre se baseando na proposta da atividade anterior.
Neste momento, caso as placas contenham intervenções dos alunos, o professor aproveita para também analisá-las, questionando o tipo de intervenção e sugerindo que os alunos pensem sobre o porquê de cada intervenção em determinada placa.
Com isso, o professor contextualiza os poemas, introduzindo a poesia marginal e seus autores mais conhecidos no meio literário. Aqui caberá a distinção entre a poesia marginal da geração de 70, cujos poemas estão sendo trabalhados, e a poesia marginal produzida nos dias de hoje. Também é o momento de ser discutida a poética dos autores marginais, seus temas e possíveis leituras, ressaltando-se sempre o gênero poesia. É possível que se façam comparações entre as poesias marginais e outros gêneros de poesia para que os alunos percebam suas características e sejam capazes de reconhecer o gênero que estão trabalhando. Se a atividade for realizada no ensino médio, é provável que os alunos consigam apreender as diferenças entre os gêneros poéticos e suas modalidades e peculiaridades históricas.
A apresentação das poesias marginais é parte essencial do desenvolvimento deste projeto, por isso é importante que os alunos sintam-se à vontade e participem da aula. Para isso, o professor pode utilizar estratégias de leitura em grupo (todos lerem, por exemplo) e também de fruição, possibilitando que os alunos façam seus comentários. Parte-se do princípio que a leitura de qualquer texto relaciona-se com a bagagem de vida dos alunos, e esta, por ser diferenciada, acarretará em distintas formas de receber a leitura. Logo, é importante que o professor permita os comentários, despindo-se de seus preconceitos.

Atividade 4 - Placas: da sala de aula para a escola

Nesta etapa, propomos uma atividade que visa à apropriação do gênero por parte dos alunos. Inicialmente, não haveria a sugestão de produção de texto, mas, caso ela ocorra espontaneamente, pode ser incorporada à atividade.
A proposta é que se formem grupos em sala de aula e o professor forneça aos alunos diversos livros de poesia marginal (ter acesso aos livros é fundamental, xerox só em último caso). Então, em conjunto, os alunos fariam uma seleção de poemas para serem colocados nas placas e espalhados pela escola por uma semana. No caso de haver alunos que se sintam inspirados em escrever um poema para virar placa, esta será exposta juntamente com as outras.
Esta atividade pode ser conduzida de diversas maneiras: a turma pode trabalhar com apenas um poeta; cada grupo pode escolher aleatoriamente, pode haver um rodízio de placas de diferentes turmas e até mesmo uma exposição de placas de poemas de alunos. A proposta é que os alunos pensem também no lugar onde as placas serão penduradas, relacionando, pois, o leitor (que varia de acordo com o local em que a placa se encontra) com a leitura que fará. Assim, os alunos poderão decidir sobre o que determinado tipo de leitor lerá em cada local.
Nesta etapa, canetas serão penduradas nas placas, indicando uma possível interferência dos leitores. Então, cada vez que as placas forem retiradas para que se coloquem outras, os poemas com as intervenções e possíveis produções de texto serão levados de volta para a turma que fez a seleção e analisados com a mediação do professor.
Com esta atividade propiciamos aos alunos não só o contato com o gênero, mas a apropriação deste. Também é possível trabalhar com os alunos questões sobre a recepção da leitura dos poemas por outros alunos e questões acerca da comunicação pela escrita. Além disso, no contexto escolar, a atividade propõe uma interação com o espaço físico da escola e, conseqüentemente, a apropriação desse espaço.


Bibliografia
BRITO, Antonio Carlos Ferreira de. Não quero prosa. Rio de Janeiro, UFRJ, 1997.
CANDIDO, Antonio. Na sala de aula. São Paulo, Ática, 1998.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte, Itatiaia, 2000.
MORICONI, Ítalo. A poesia brasileira do século XX. Rio de Janeiro, Objetiva, 2002.
PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. São Paulo, Ateliê Editorial, 2004.
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo, Cosac Naif, 2007.


Anexos

Poemas selecionados


auto-epitáfio n.2
para quem pediu sempre tão pouco
o nada é positivamente um exagero.

(José Paulo Paes)



É proibido pisar na grama
O jeito é deitar e rolar


acordei Bemol
tudo estava sustenido
sol fazia
só não fazia sentido
(Paulo Leminski)


Sem budismo

Poema que é bom
acaba zero a zero.
Acaba com.
Não como eu quero.
Começa sem.
Com, digamos, certo verso,
veneno de letra
bolero, ou menos.
Tira daqui, bota dali,
um lugar, no caminho.
Prossegue de si.
Seguro morreu de velho,
e sozinho.

(Francisco Alvim)



Descartável

Vontade de me jogar fora

(Francisco Alvim)



mas

é limpinha
(Francisco Alvim)


Happy End

O meu amor e eu
Nascemos um para o outro

Agora só falta quem nos apresente

(Cacaso)


Anoitecer

A Adelino Fontoura

Esbraseia o Ocidente na agonia
O sol... Aves em bandos destacados,
Por céus de oiro e de púrpura raiados
Fogem... Fecha-se a pálpebra do dia...

Delineiam-se, além, da serrania
Os vértices de chama aureolados,
E em tudo, em torno, esbatem derramados
Uns tons suaves de melancolia...

Um mundo de vapores no ar flutua...
Como uma informe nódoa, avulta e cresce
A sombra à proporção que a luz recua...

A natureza apática esmaece...
Pouco a pouco, entre as árvores, a lua
Surge trêmula, trêmula... Anoitece.

(Raimundo Correia)
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Por um outro ensino

20:17
Projeto de Dirceu Villa de Siqueira Leite e João Batista Vieira Jr.
2000


Resumo

Relato de um projeto desenvolvido, ou melhor: vivido. Nada que o deixe estanque no tempo passado: traz o conteúdo corporificado, mostra prática significativa e significada, respeita as pessoas do processo educativo – e não os protocolos petrificados – sem ingenuidade e consumismo-pedagógico; por um “outro ensino” tira da cadeira e incomoda com sutileza, propõe ação viva e descortina a escola da fumaça reabrindo suas janelas de cintilação.


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O telefone sem fio. Essa é uma brincadeira em que dizemos umas palavras no seu ouvido e você passa para outra pessoa, que, por sua vez, passará para outra que passará para outra etc., até que chegue ao fim e alguém diga em voz alta o que acha que ouviu. O resultado é quase sempre o mesmo: não sobrou nada do que havia no início.
Literatura tem sido uma coisa impenetrável para a maioria das pessoas porque é muito comum que elas pensem: “Preciso entender o que o autor quis dizer”, ou algo como “Preciso saber o que está por trás daquilo que ele diz”. O medo associado à incapacidade de compreender não deve ser desprezado.
O primeiro caso não põe em questão um escritor, pois um escritor nunca “quer dizer”; ou ele diz ou tudo está acabado, e talvez ele venda suas coisas e vá viver num retiro para pôr as idéias em ordem, talvez ele se torne um filósofo, pouco importa. O fato é que ele NÃO É um escritor.
O segundo caso nos apresenta uma metáfora? Não. Uma metáfora não esconde nada atrás, ela é o coração de uma verdade, uma síntese drástica, poupando o leitor de ficar lendo dúzias de linhas explicativas e tediosas, além de provocar o efeito de uma sensação. Há a alegoria, mas a alegoria ou se torna explícita por fazer uma coisa abstrata assumir vida como gente, ou se refina por processos de acumulação de significados combinados. Além do mais, faz parte do uso retórico inscrito num recorte cultural quase específico, e a maioria de leitores não especialistas não vai dar com esse tipo de coisa a toda hora (embora, segundo acreditamos, talvez fosse mais proveitoso que as pessoas passassem a ter outros hábitos de pensamento).
Ficamos surpresos que ninguém tenha se oferecido para prestar esclarecimentos tão simples; na verdade, não. Há muitas pessoas ocupadas com crítica literária e novelos de lã.
Há uma figura de linguagem chamada elipse, que serve à ironia seus melhores pratos, e deve fazer sentido pela ausência. Mas a elipse não é uma idiotice de simplesmente se suprimir qualquer coisa. Há a intenção deliberada de um efeito de cumplicidade quando o sentido completo é enfim restituído. A ironia exige que o leitor compareça com seu cérebro ou nada pode ser feito, nem pelo poema, nem pelo leitor. Infelizmente, a literatura continua no esquema do telefone sem fio entre a crítica e o público, para exumação ou exegese, o que é, convenhamos, chato pra danar. Mas experimentamos a ironia em cima de classes de aula da zona Leste, uma delas totalmente desacreditada pelos professores.
A ironia é, talvez em alguns exemplos encontráveis, o tipo de literatura mais enroscado que existe. Entender os poemas de Jules Laforgue, alguns de T.S.Eliot, e as elegias de Propércio são desafios para quem tem um nível respeitável de leitura. Entender esses poemas é fundamental para fruí-los; se você não entende, não acha graça. Há aqueles em que a ironia simplesmente desanca o personagem tratado, e Corbière, autor francês do fim do século dezenove, é mestre nisso, e chamava Victor Hugo de garde nationale épique, e Vigny, inventor da larme écrite.
O caso é que levamos um poema pré-fabricado a partir de um parágrafo de prosa, que resultou num epigrama irônico. A nossa intenção era verificar, com base num trabalho que os alunos entregariam ao fim da aula, a competência que tinham em decifrar e desenvolver a ironia e, mais além, se se davam conta das diferenças entre poesia e prosa, deixando de lado as evidências gritantes da forma no papel (coisa contestada por poetas há mais de um século) e rima (que precisa ter algum sentido para acontecer, desmerecida como enfeite, vista como bijuteria).
Há uma vantagem em se trabalhar com textos pequenos com os alunos: você não mata ninguém de sono nem tédio. Não se deve, entretanto, usar material de segunda-mão; apenas textos bons o bastante para valerem o seu tempo e o dos alunos na sala de aula. Sem adaptações, paráfrases, e todo esse gênero de enrolação. Kafka tem uma história que não passa de dez linhas e vale toda uma discussão a respeito do que é um conto, e, no limite, uma narrativa. Epigramas são pequenos e chamativos, porque, em geral, ou são malignos ou gnômicos, ou seja, formulares, sentenciosos sobre vida & morte, e tudo que preenche esse pequeno espaço.
É preferível um capítulo, dois ou três, do Quixote, do que uma adaptação inteira. O Quixote é perfeitamente legível se se usarem alguns capítulos em separado, que concluam uma aventura, trazendo o que é importante, todo o estilo de Cervantes, que, assim como Rabelais uns séculos antes, estava plasmando a prosa moderna, e se serve de todos os gêneros antigos, desde o idílio pastoral em versos (exatamente como se lê em Virgílio) até o comentário, em prosa. O primeiro capítulo de São Bernardo, de Graciliano Ramos, funciona para uma discussão em torno desse pacto de credibilidade entre escritor e leitor que é a verossimilhança; e assim por diante. O fundamental é usar os próprios autores, sem intermediários.
(Um pequeno parênteses. Está claro, pela proposta, que estamos lidando com uma situação descabelada de emergência. As políticas governamentais para a educação arruinaram a escola, de parâmetros e currículos aos salários dos professores e os prédios. Ninguém recomenda fiapos de texto numa sociedade que tenha um mínimo de brio. Além do mais, trata-se de criar uma situação em que o texto literário seja novamente alvo de interesse, e acreditamos que isso possa ser feito por meio de amostras, ao menos inicialmente).

*

De qualquer forma, foi a primeira coisa que apresentamos a eles, após perguntarmos se gostavam de poesia. A maioria, como todos sabem, simplesmente não responde e fica de muxoxo. Há apenas dois tipos de alunos que respondem: os que fazem o gênero interessado e os que gostam de uma confusão. Todos os outros, nesse momento, não existem. Os da confusão em geral dizem que poesia é um saco, ou despistam com uma piada; os espertos vão logo dizendo um nome ou outro, tipo Carlos Drummond, Vinicius, etc, e querem mostrar que têm alguma espécie de familiaridade com o assunto, que você não está vindo com novidade. Esses dois se envolvem, e deve-se aproveitá-los igualmente no desenvolvimento da aula, porque é evidente que os dois têm coisas interessantes a dizer, e o mais livremente possível. O professor não deve ser uma estátua de gelo, e deve saber que pode rir do que realmente achar gozado.

Pedimos que um de cada tipo lesse um dos dois textos . A constatação do óbvio foi pedida: qual é a diferença entre esses dois textos? Partimos do básico-básico. Essa experiência se repetiu em outras classes, com resultados similares, embora as diferenças sejam de altíssima importância. Todos chegaram à conclusão de que uma coisa era uma poesia, um poema e o outro era um texto, uma descrição, uma narração, ou, mais raramente, prosa. Quando perguntamos por quê, responderam que era porque um deles estava de uma forma e o outro, de outra. Não disseram que um dos textos estava em verso, mas sugeriram que a disposição de um era a de poesia, e alguns acharam bem esquisito o fato de que não havia rimas.
Quer dizer que se esse texto não estivesse recortado nas linhas não era um poema? Essa pergunta gerou certo embaraço nos alunos, que se viram numa enrascada em que eles mesmos tinham se metido. Pedimos para que notassem qual dos textos tinha menos palavras (em uma das salas isso foi notado antes da nossa sugestão, por uma garota) e por que eles achavam que isso acontecia, já que os dois textos queriam dizer o mesmo. Daí, concluíram que o de menos palavras era o poema, pois tinha de ser mais direto. Essa resposta nos deixou muito satisfeitos. Muitos chegaram mesmo a perceber que estruturas típicas da prosa, como a introdução ao assunto (Era uma moça, etc.) não ocorriam no texto poético.
Reunimos as idéias que apresentaram e demonstramos como haviam chegado ao cerne da coisa. Preferimos usar uma ou outra palavra que não conhecessem (e que se sentiram bastante à vontade para perguntar) como concisão, do que só falar o que já fizesse parte do repertório deles. Evidentemente, não se explica nada para eles como se explicaria algo para gente do primeiro ano de Letras. Constatamos que alunos tidos como bagunceiros, desordeiros ou malandros costumam ter alguma verve para ler poesia; evidentemente, não vão demonstrar essas qualidades se se der para os infelizes ler Bilac.
A leitura em voz alta é importante, e é necessário pedir isso aos alunos. Nossa experiência tem demonstrado que, se o contexto criado pelo professor for interessante, eles até mesmo se oferecem. Uma porção de alunos teve leitura acima do que esperávamos.
Nossa proposta de aula foi inseri-los no contexto próprio da literatura. De que modo? Um daqueles que inscrevemos no início do projeto. É impossível lidar com textos clássicos se o professor acha que é preciso caçar características de estilo de época num dado poema — na maioria das vezes, ruim, usado apenas porque parece fácil para a tarefa de pinçar características. Todos os alunos com quem conversamos assinalaram esse como um dos principais motivos do desinteresse pelas matérias escolares em geral: a impessoalidade completa dos assuntos tratados numa aula torna a coisa de ridícula a insuportável.
Um rapaz, considerado pivô do inferno dos professores veio, ao fim da aula (sobre parnasianismo!), nos mostrar um caderno onde escreve os poemas de amor mais deslavados do mundo, numa linguagem que ninguém conseguiria imaginar. O detalhe: nós nem sequer pedimos que os eventuais poetas se apresentassem. Os alunos respondem mecanicamente a uma aula mecânica. Mas isso realmente não significa que estão mortos do pescoço para cima. Muito pelo contrário.

*

Partimos da discussão sobre o que é poesia para uma discussão sobre a charmosa expressão arte pela arte. O intuito era ver até que ponto eles haviam entendido a alcunha pela qual o parnasianismo ficou conhecido e o quanto de liberdade e irreverência podia levá-los a considerar a expressão uma tolice. A maioria, condicionada por anos de escola acéfala, buscava reproduzir os argumentos que já tinha ouvido ou lido sobre o assunto. Deixamos bem claro que não ligávamos nada para certo e errado, mas que ligávamos bastante para o esforço pessoal de reflexão. Não queríamos a definição escolar tacanha, porque achamos que os alunos podiam ser mais espertos que os autores dos livros didáticos. E o que há nos livros é imprestável: a maioria dos adolescentes repetia arte pela arte sem ter idéia do que dizia, o que ficou patente no momento em que perguntamos que raio de coisa eles entendiam com aquilo. Desconversavam, riam, cobriam a cara ou repetiam o bordão.
Quando dissemos para ignorar o que pudesse já estar escrito e dessem a opinião que tinham a respeito, ouvimos várias opiniões interessantes: “Não, é arte pelo dinheiro”, “Não acho que isso faz sentido, arte pela arte”, “Ah, eles queriam um novo estilo”, “Tenho uma pergunta: por que eles, no Renascimento, quando vão pintar as partes íntimas sempre fazem uma coisa reta? Não tem ninguém que pintou mesmo?”, “O que acontece, na arte pela arte, é que os caras estavam isolados do mundo”. Alguns não conseguem mesmo evitar a contradição: dizem que arte pela arte significa que o autor se preocupa em “expressar” algo; mas a maioria costuma afirmar, em todas as salas em que foi apresentada a aula, que pouco importa o que o autor diz, importa a arte.
Importa a arte, querendo demonstrar que a arte vem separada do conteúdo. Então existe uma forma sem nada dentro, um vazio completo? Esse é outro momento em que os alunos titubeiam. Toda afirmação peremptória que soltam e é retomada pelo professor os faz ficar com um pé atrás. Evidentemente, quando se trata de arte, tanto o absoluto quanto o relativo estão distribuídos aleatoriamente, impossíveis de se determinar por regras ou um método de decorar. Os alunos param e pensam. Um aluno desconfia da armadilha e reclama: “Mas então o que é arte pela arte?” O professor pode muito bem dizer: “Pois é, nem eu sei.” Isso funciona porque os alunos querem que o suplício acabe e venha logo a revelação; você os deixa mais aflitos. Funciona também porque, em parte, é verdade.
Nossa atitude foi mostrar que a expressão foi criada por um filósofo (Victor Cousin, 1792-1867), pressionado, como todo crítico, entre o abrir a boca e dizer uma tolice ou ficar com ela fechada e parecer um tolo: escolheu a primeira alternativa e cunhou o termo que tenta dar contorno a uma geração de artistas que dá de ombros ao que acontece na sociedade inimiga e cuida de fabricar enfeitinhos artificiais, bem do jeito que Bilac fez questão de explicar em Profissão de Fé (na verdade, poema colado do francês Théophile Gautier, de um poema de vinte anos antes que lançara o parnasianismo na matriz, i.é., na França).
Para se ter uma idéia de como a coisa é idêntica, basta ver que Gautier tem um livro com o título sugestivo de Émaux et Camées, Esmaltes e Camafeus. Explicamos tudo isso aos alunos, inclusive para que ficasse clara a filiação da escola poética, que deve tudo aos franceses. Para concluir, foi lido o poema Profissão de Fé, mas não do modo soporífero com que costumam ser executados os poemas em sala de aula; as leituras burocráticas dos poemas (juntamente com a empostação declamatória) precisam ser banidas das escolas em respeito aos ouvidos alheios. Até no Pai Nosso diário é possível encontrar mais fervor e boa-vontade.
A leitura foi acompanhada de esclarecimentos marginais, dando conta rapidamente do vocabulário incompreensível para as massas mais um veloz atendimento quanto a referências mitológicas: isso não interfere na leitura. A quem acha que sim, basta assistir ao Cyrano de Bérgerac com Depardieu para ver como é possível inserir comentários no meio dos versos sem que você pareça uma versão ambulante da Delta-Larousse.
Lá pela vigésima estrofe um aluno boceja; boceje você também e verá que todos vão rir e prestar atenção até o fim. A cada passo onde os motivos principais da escola apareciam, chamava-se a atenção dos alunos para o fato, e foi dito mais de uma vez que o poema resumia, como numa carta de intenções, aquilo que viria a ser o movimento inteiro.
Após a leitura, muitos alunos com os quais conversamos sabiam refazer todo o trajeto dentro de suas próprias cabeças. Por quê? Porque o poema lida com associações, e não com uma elaboração abstrata e duvidosa que tenta lançar de jato uma característica no vácuo. Tudo que fica perdido na abstração de uma fórmula vazia será perdido também na cabeça do aluno; uma imagem eloqüente, jamais. E a serena deusa Forma ficou guardada na cabeça deles sendo aporrinhada por uma multidão de bárbaros (românticos medievalistas inspirados deprimidos satânicos etc), mostrando como Bilac apresentava sua versão helenística da arte e sua aversão por inspirações divinas – o que atinge o ridículo quando Coelho Neto, furioso com o tempo que passava para ele e sua turma parnasiana, se retira furiosamente de uma sala onde se debatia a nova literatura dizendo, ofendido: “Sou o último dos Helenos!”

*

A verificação, em todos os casos das aulas que demos, foi realizada como produção textual orientada dos alunos, ou gravação em fita cassete de entrevistas, com perguntas e respostas ou debates sobre tópicos. No caso da aula sobre o que é poesia, pedimos gentilmente que os alunos escrevessem, em grupo em algumas classes, sozinhos em outras, um poema a partir de texto previamente elaborado (tratava-se de verificar o efeito da comparação entre o parágrafo de Maupassant, de O Colar de Diamantes, e o epigrama que extraímos de lá). Os alunos deviam notar uma porção de coisas para produzir algo que prestasse, como:
a) a ironia, como dissemos, é elíptica; da mesma fonte da ironia vem a poesia, vêm os sonhos, etc. Freud falou sobre o assunto, Ezra Pound também e mais um monte de gente;
b) o verso tem exigências próprias, tanto de prosódia quanto de “acabamento”, isto é, um verso não é uma linha qualquer recortada;
c) um poema, por ser estruturalmente diverso de um texto em prosa, e assim uma estrofe de um parágrafo, demanda que algumas palavras sejam mandadas embora na transposição da prosa para o poema, mas sem danificar o sentido.
Isso é o mínimo para se transpor a prosa para o verso. Não estamos implicando aqui que os alunos formalizassem assim sua tarefa. É normal que um jogador de futebol não saiba descrever matematicamente a parábola que seu chute precisa descrever para encobrir um goleiro adiantado na grande área; mas também é evidente que ele pode realizar isso a despeito de uma improvável erudição numérica. O professor deve medir suas expectativas calculando o alcance de suas conduções e explicações. Um aluno dificilmente adivinha algo, mas é possível conduzi-lo a conclusões que não seríamos capazes de imaginar apenas figurando em nossa mente cheia de preconceitos um adolescente em completo desmazelo e má-vontade. Tanto foi que saímos surpresos, e com boa surpresa. Vamos dar alguns exemplos. O texto básico era este:
Ele falava o tempo todo, com autoridade, de Beethoven e outros clássicos, e gostava de ser fotografado junto de pianos e belos instrumentos. Dizia que era um músico dos bons, mas apenas tocava pratos na bandinha da Guarda Civil.
Texto que imita o estilo seco de composição de Maupassant, só que simplificado. A maior parte das composições dos alunos reconheceu com sucesso o modo de transposição, a linguagem econômica do poema, o desenho prosódico de um verso irônico. Uma minoria ficou aquém e a outra, além. O caso daqueles que ficaram além é curioso. Eles não têm nenhuma cultura literária (em alguns é possível perceber um estilo bem aproximado do rap), mas enriqueceram o texto com coisas que não estavam nele, demonstrando uma compreensão bastante impressionante, seja do verso, seja da ambiência maledicente do texto. Por exemplo:

Depressivo e autoritário falava de Beethoven
Julgava-se bom músico,
Gostava de exibir seus belos instrumentos
Mas na banda civil tocava apenas pratos.

O verso consegue o efeito de compressão das informações do original em prosa por meio da enunciação direta – vai para o espaço o início “Ele falava o tempo todo”, que é uma elaboração bastante prosaica, em favor da definição seca “Depressivo e autoritário”, invenção dos dois alunos a partir dos dados. A opção foi um quarteto, que é uma forma comum da poesia, digamos, convencional. Eles também não fugiram muito ao esquema do texto de partida, como se pode observar, mas demonstraram captar a intenção da aula de um modo completo, e a intenção da aula era bastante abrangente: eliminar preconceitos formais na definição de poesia e estabelecer as diferenças possíveis com a prosa. Outro exemplo:

falava o tempo todo
de Beethoven e gostava de ser fotografado
junto de belos instrumentos

músico e dos bons,
mas apenas tocava pratos
na bandinha da guarda civil

que desdobra o texto em dois tercetos, curiosamente, uma forma também muito praticada não só pela tradição ibérica, mas também por toda a latinidade. Menos inventivo no significado, esse poeminha ousa mais na forma. Como muitos poemas modernos, ignora as maiúsculas no início do verso; corta as informações do texto em prosa de uma maneira mais sincopada, distante, observando entretanto as mesmas leis que comentamos a respeito do anterior. Agora, um bastante divertido:

Falava o tempo todo
com autoridade de Beethoven
fotografados junto de pianos e instrumentos
músico dos bons, dizia ele ser
tocava pratos na cozinha da guarda civil.

Em que pese o português estropiado, vejam só isto: “tocava pratos na cozinha da guarda civil”! É incrível até onde essa dupla levou a ironia no poema, ultrapassando a concepção original e misturando duas noções numa única palavra, “pratos”, que deu um desfecho hilário para o infeliz personagem. Quanto ao português, se estivessem familiarizados com usos mais sutis de linguagem, como os dois pontos e o travessão (que poderia ter sido utilizado com proveito na introdução do terceiro verso), o problema estaria resolvido. É preciso ter em mente que entramos de sola numa classe que era considerada a baderna e o caos, uma classe levada através da neblina irrespirável dos livros didáticos. Mesmo assim, produziram estes textos que estamos mostrando. Esse último caso foi o único: ninguém mais transgrediu a esse ponto e com tal resultado as informações originais. Houve algumas modulações muito interessantes porém:

Beethoven era seu senhor
e desejava ser como ele
posando junto aos grandes instrumentos
de um verdadeiro músico.
Bom sonhador, isso é o que ele era
mas a Guarda Civil
era a sua orquestra.

que, devemos concordar, é bastante apreciável, apesar de não ter o mesmo pique de impacto dos outros. Remaneja com razoável liberdade os temas do texto, e dá um desfecho que, se não é tão surpreendente quanto o anterior, reforça a ironia por sugerir que o próprio personagem se engana a respeito de onde toca. A palavra “orquestra” é cuidadosamente disposta no último verso para o impacto do ridículo, prática usual entre poetas satíricos. É um poema muito bem arranjado, e os versos são divertidos. E com desfecho semelhante, temos este:

Contava para todos
Com a autoridade de poucos
Gostava de ser fotografado
Ao lado de instrumentos caros.

Não tinha muito dom para a música
Mas tinha seu lugar separado
Na bandinha civil
Onde era seu reinado.

Muito bem realizado do ponto de vista do verso, principalmente na segunda estrofe. Fica claro que compôs o poema tendo por base o jeito como se escreve um rap, com frases diretas, abruptas e misturando referências. A recorrência de mais uma forma comum aos brasileiros pela ascendência ibérica, os quartetos; e aqui, um dos únicos a tentar o recurso da rima – que soa bastante natural – entre reinado e separado, e sabemos que é algo de ousadia, uma vez que a rima caiu de moda a ponto de ser considerada inaceitável por algumas pessoas, incluindo poetas. Mas estamos no reino do rap.
Esse aluno também remanejou os dados do texto original, sentindo-se à vontade para escrever algo que considerasse mais seu. Cada verso tem, digamos, sua marca pessoal, a idéia que lhe deu o texto de partida. O curioso é que é um dos alunos considerados mais indisciplinados da sala. Ele se mostrou muito interessado na aula, embora, como toda sua classe e todas as outras classes em que demos as nossas caras, estivesse um tanto cético no início e tirasse barato de tudo que era dito. Aos poucos, chamado a dar sua opinião em diversas questões, seu comportamento mudou e suas intervenções, embora sempre irônicas, se focalizaram no tema da aula. Ajudou muito, confessando que os poemas parnasianos são de lascar, e brincando com as figuras que distribuímos para a sala.
*
Este foi outro ponto importante. As figuras eram reproduções de alta qualidade de quadros que compreendiam um leque de Giotto a Mondrian, e pedimos que dissessem se viam neles algo que pudessem chamar arte pela arte. Esse tipo de atividade pode ser aplicado a várias finalidades, e é uma variação de bolso da visita a museu; além disso, você divide a classe em grupo e deixa que façam a algazarra que quiserem. O professor passa de grupo em grupo para ver no que está dando. Uma garota ficou muito satisfeita de reconhecer o Nascimento de Vênus, de Botticelli; um grupo estranhou o quadro de Piet Mondrian que representa vários retratos por meio de algumas linhas paralelas e perpendiculares, no estilo que, com reduções ao essencial, seria caracteristicamente o seu – mas se deliciaram com a explicação e se puseram a querer encontrar mais e mais rostos no meio das linhas. Vários grupos gostaram de um quadro de Brueghel, o Embate entre o Carnaval e a Quaresma, onde metade dos personagens se dedica aos prazeres e metade ao comedimento, e no primeiro plano há um gordo sobre um barril se esbaldando de bebidas e carnes, como se estivesse sobre um cavalo, num duelo contra um magrelo descarnado, com poucos apetrechos, representando a frugalidade. Um garoto, vendo o gordo num barril, com uma enorme saqueira, disse: “Ah, esse é o Baco, não é?”, não era, mas o palpite foi muito bom. Outros tinham As Três Graças de Rafael Sanzio – que rendeu muitas piadas porque as três mulheres estão completamente nuas e praticamente abraçadas –, quadros de Munch, Portinari, Chagall, etc.
À nossa questão de arte pela arte, responderiam desta maneira: os que achassem que estavam em posse de um quadro que se encaixasse na definição, ergueriam para toda a classe. Curiosamente, na primeira em que se perguntou isso os alunos ergueram, sem pensar, todos os quadros modernos. “Vocês perceberam que só os quadros modernos foram levantados?” Eles associavam arte pela arte com uma linguagem que consideravam incompreensível, e mulheres nuas todo mundo entende, não entende? Isso foi algo com o que nos deparamos de surpresa, sem nunca imaginar que seria essa a reação, ou que ela pudesse ter algum padrão reconhecível. Discutimos então questões de técnica em pintura, como o estilo dos pintores e suas intenções, e essa discussão encaminhou muito bem as coisas para a conclusão que já apresentaremos.
Vamos considerar mais dois poemas:
Tocava apenas pratos na bandinha,
mas gostava de ser fotografado,
cheio de gracinhas
posava ao lado de pianos e
belos instrumentos da vizinha.

Esse merece menção em separado por causa da troca de sentido, além das rimas. Primeiro, as alunas resolveram inverter a ordem do poema, com um efeito muito interessante, deslocando a piada final para outra parte do texto, que reelaboraram para dar destaque a uma apimentada brincadeira sexual, que fica clara no duplo sentido do último verso (notar a rima de gracinhas e vizinha). Rimos muito com esse poema, e, portanto, o consideramos muito bom. Para concluir, vamos ver um que recriou toda a estrutura proposta:
Como pode?
Como pode um simples homem
tocador de pratos de uma bandinha
Da guarda civil, se achar músico dos bons?
Como
Como pode?
Como pode tirar fotos junto a
belos pianos e instrumentos,
Falar de Beethoven e outros?
Como pode?
Mas...
Será que ele pode?
Se ele pode, quem não pode?

que investe em outro tipo de construção, com a interrogativa repetida, coisa muito comum nos poemas em latim de Catulo, século I a.C. Evidente que os alunos não sabiam disso, mas essas estruturas permeiam canções populares, e todo o verso posterior. O poema se alonga e ganha um aspecto mais moderno, mais coloquial.
Houve quem nos devolvesse a folha com um texto em prosa; quem aumentasse brutalmente o texto, desconsiderando qualquer coisa que tivéssemos dito no início da aula e discutido com eles, a partir de suas próprias conclusões. Mas o importante a se reter aqui é o precedente. Parece-nos inteiramente indecente dizer que essas pessoas não têm interesse nenhum, seja na escola, na literatura, nos textos clássicos. Verificamos que conheciam quadros clássicos, que estão abertos à arte moderna que não compreendem, que sua espontaneidade interpretativa é, às vezes, muito mais sagaz que a de críticos entupidos de informação e por isso mesmo cegos para a evidência. São alunos considerados casos perdidos e que nos entregam poemas bem feitos, que nos vêm mostrar cadernos cheios de poemas, que vêm conversar conosco sobre os mais variados assuntos (quadrinhos, heavy metal, rap, Cuba, exclusão social), que reconhecem figuras mitológicas nos quadros de cinco séculos atrás.
Damos um exemplo muito específico: a um garoto que, sabe-se lá o porquê, estava sentado distante de todos em absoluto silêncio, renitente a participar da aula, foi entregue, sem identificação, a figura da Sibila de Michelangelo, dos afrescos da Capela Sistina. Dirceu se sentou ao lado do garoto e disse: “Vamos lá, você vai me dizer qualquer coisa que tenha encontrado neste quadro, não precisa dizer pra classe toda.” E o rapaz disse, então: “Ela está assustada com algo que percebe que está vindo”. Para qualquer pessoa que conheça a obra isso terá feito todo o sentido. A Sibila diz o futuro, e Michelangelo a representou com o rosto voltado para algo que só ela vê, daí o susto. Foi o que se disse a ele, o quadro foi explicado e foi possível ver sua satisfação; depois, entregou o poema e pediu que fosse lido, queria saber se o que tinha feito era bom. Um aluno que seria classificado de apático em outro esquema de aula.
A exemplo dessa aula, pudemos testar mais algumas do nosso estoque, lembrando que não estávamos à vontade para fazermos o que quiséssemos, uma vez que era imperativo dar curso ao programa que a professora estava seguindo. Demos aulas também sobre o Simbolismo, e tivemos mais outras surpresas.
Partimos de Baudelaire, das Correspondências, que os alunos receberam bem. Comentamos o ligeiro problema da tradução de Ivan Junqueira, que traduz a expressão forêts de symboles por bosque de segredos, em respeito a uma rima que precisava manter; mas isso lhe custou uma das primeiras aparições da palavra que caracterizaria o movimento posterior a Baudelaire e que o toma como ponto de partida (o manifesto é de Jean Moréas). Lemos Rimbaud, do polêmico poema Vénus Anadyomène.
Qual de um verde caixão de zinco, uma cabeça
Morena de mulher, cabelos emplastados,
Surge de uma banheira antiga, vaga e avessa,
Com déficits que estão a custo retocados.

Brota após grossa e gorda a nuca, as omoplatas
Anchas; o dorso curto ora sobe ora desce;
Depois a redondez do lombo é que aparece;
A banha sob a carne espraia em placas chatas;

A espinha é um tanto rósea, e o todo tem um ar
Horrendo estranhamente; há, no mais, que notar
Pormenores que são de examinar-se à lupa...

Nas nádegas gravou dois nomes: Clara Vênus
— E o corpo inteiro agita e estende a ampla garupa
Com a bela hediondez de uma úlcera no ânus.

(Tradução de Ivo Barroso)

Que os alunos, muito espertos, tendo recebido uma cópia bilíngüe, resolveram ouvir o texto no original. Depois foi pedido que uma garota lesse o texto, exatamente no momento em que o coordenador pedagógico entrava na sala de aula. Ele recebeu a folha e sentou-se. A menina sentiu um desconforto diante do último verso, mas foi em frente corajosamente. O coordenador sorriu. Levamos à lousa o quadro de Botticelli, O Nascimento de Vênus, e pedimos para que comparassem.
Passou-se certo tempo, alguma discussão, até que perceberam que uma era o oposto evidente da outra. Botticelli nos oferece uma deusa, nascida do oceano, de frente para nós, de beleza impecável; Rimbaud lança diante de nós uma prostituta, erguida de uma banheira, de costas, com o corpo castigado, entre outras coisas, por uma úlcera no ânus.
Rejeição à sociedade rica e apodrecida da Europa, o desenho se faz da descrição do símbolo da derrocada, por paródia ao símbolo da beleza aos olhos da civilização. Disso partimos para o que aconteceu no Brasil, muito diferente, mas de matriz semelhante.
Um simbolista brasileiro, Cruz e Souza, explora brancos brilhantes, luzes cintilantes, etc. como lemos em Antífona; já se disse a grande besteira de que isso acontecia porque o homem era negro numa sociedade recém-saída do escravismo. Não ocorreu a esses críticos que todo branco ofuscante esmaece os contornos, dilui a marcação sólida da realidade e introduz a incerteza e o sonho (Camus muuuitos anos depois faria o personagem principal de O Estrangeiro matar por não conseguir ver, cego pela luz). Isso era meta básica dos que se chamavam simbolistas, desde Baudelaire, leitura assegurada de Cruz e Souza, que sustenta o mesmo ponto no poema citado, Antífona.
A aula foi concluída com a atividade de discussão sobre frases famosas ou palavras de ordem de, por assim dizer, “simbolistas” . Utilizamos:

Antes de tudo, a música. Paul Verlaine
É preciso ser absolutamente moderno. Arthur Rimbaud
Os pássaros estão ébrios de ficar entre a espuma desconhecida e os céus. Stéphane Mallarmé
Os sons, as cores e os perfumes se harmonizam. Charles Baudelaire
O desregramento de todos os sentidos. Arthur Rimbaud
Sou o império ao fim da decadência. Paul Verlaine

E as respostas que foram recebidas são, entre outras: “Para você sentir alguma coisa não tem regra nenhuma”, “Estava acabando aquela expressão da perfeição, eles estão buscando a perfeição em bens materiais, e que tudo que era perfeito antigamente tinha defeito na verdade”, “Ele está na dúvida se quer descobrir alguma coisa nova ou se fica no céu, aquela coisa maravilhosa. Ele não sabe para onde ele vai.”
A última resposta foi para o verso de Mallarmé, e foi dada por uma garota de dezesseis anos. Ela não havia lido o poema, não conhecia Mallarmé, mas sua resposta foi a única que se sobressaiu diante da dos outros que analisavam o mesmo verso – aliás, propositadamente difícil; queríamos saber até onde era possível contar com a perspicácia deles. O verso, do poema Brise Marine, “Brisa Marinha”, é a resposta de Mallarmé ao poema de Baudelaire que compara o poeta ao albatroz, pois, igual à ave, o poeta voa belamente nas alturas, mas aterrissa ridiculamente entre os homens. Para Mallarmé, o poeta está, na verdade, no perfeito limite, na dúvida entre experimentar uma coisa ou outra. A menina, diante de apenas um verso, foi capaz de reconstruir o sentido inicial, ainda que a palavra “ébrio” confundisse um pouco as coisas. Ela estava tímida no grupo, e só falou quando se desconfiou que seu silêncio era revelador e se perguntou a ela o que achava.

*
No mundo do ensino, a situação é desamparadora, o governo é horripilante nos três níveis do executivo, os salários nos dão medo, etc., mas é impossível ficar indiferente diante das possibilidades que os adolescentes oferecem de aprendizado. Eles respondem com simpatia e inteligência SE e unicamente SE forem instados a isso.
Vários deles fazem coisas ligadas a alguma arte: tocam no conjunto da igreja e têm seu próprio conjunto, estudam e desenham histórias em quadrinhos (encontramos três com enorme talento e um já quase profissional), escrevem poemas com alguma ambição, apreciam moda, e estavam animados com uma radionovela que gravavam com base em Dom Casmurro (descontada a insatisfação por não poderem adaptar os diálogos) etc. Como esperamos ter deixado mais do que claro, eles nos surpreenderam a toda aula, porque eram, além de tudo, considerados casos perdidos, e reagiram muito bem às nossas propostas.
Eles próprios formalizam a queixa do desinteresse que vai do diretor aos professores (excluindo o coordenador pedagógico, que faz as coisas funcionarem num certo nível e sabe o que está fazendo). A professora senta diante deles, lê o Faraco & Moura e manda que eles façam, de bico calado, o exercício da página tal. Isso não pode ser considerado aceitável, mesmo porque é prática comum na maioria dos colégios e desde há muito (quando estudávamos no colegial já se praticava essa lição de dormir).
É confortável não pôr o cérebro para trabalhar, e reclamar da preguiça dos alunos. É agradável esperar da oficialidade aquilo que se deve ensinar, e jamais questionar o modelo e os textos propostos pela sensaboria geral. O único problema é que esse é o meio mais seguro de garantir que a banalidade, a burrice, a incompreensão e outros derivados do método, sejam perpetuados sob a gentil alcunha de crise da educação.
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Revista INFLUXO

Do número 1 da revista Influxo constam sequências didáticas que trabalham a poesia elaboradas por alunos de licenciatura em Português da FE-USP

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