Literatura & Educação
Blog da Profa. Dra. Neide Luzia de Rezende e dos integrantes de seu Grupo de Estudos - Faculdade de Educação da USP

Os projetos sobre poesia

A natureza histórica do poema se mostra imediatamente no fato de ser um texto que alguém escreveu e que alguém lê. Escrever e ler são atos que se sucedem e que são datáveis. São história. De outra perspectiva, o contrário também é certo. Enquanto escreve, o poeta não sabe como será seu poema; saberá quando, já terminado, o leia. O autor é o primeiro leitor de seu poema e com sua leitura se inicia uma série de interpretações e prazeres. Cada leitura produz um poema distinto. (…) O poema é uma virtualidade transhistórica que se atualiza na história, na leitura. Não há poema em si, mas em mim ou em ti. (...) Cada leitura é histórica e cada uma nega a história. As leituras passam, são história e, ao mesmo tempo, a transpassam, vão mais além dela.
(Octavio Paz, Os filhos do barro, p. 472)

Na perspectiva metodológica decorrente do conceito de gêneros que adotamos, hoje disseminada pela adoção da teoria bakhtiniana quase hegemônica no ensino, é inevitável que práticas sociais e práticas escolares se enredem. Nessa perspectiva, na aprendizagem dos conteúdos escolares pulsa a vida social. É desse modo que propomos aqui o trabalho com a poesia em sala de aula.
Se, como diz Octavio Paz, a poesia só se realiza pela leitura, esta é outra inevitabilidade com que nos defrontamos: na escola é necessário LER a poesia. É verdade que na cultura escolar do século XX, cada vez mais a poesia foi se adaptando, como, de resto, toda a literatura, a uma pretensa visão cientificista, e não é de admirar que “ensinar poesia” é ensinar procedimentos técnicos de composição. Tal representação do gênero se instalou poderosamente no imaginário de professores de português e de autores de livros didático. Entretanto, ultimamente, diante dos novos paradigmas de ensino de língua portuguesa, que privilegiam a construção do sentido, e das novas idéias pedagógicas, que enfatizam o pólo da aprendizagem, esse império tem sido questionado, embora na prática resista.
A construção do sentido e a ênfase no pólo da aprendizagem levam, portanto, a se privilegiar o aluno e, no caso da literatura, a leitura que ele faz do texto; ou seja, não se trata de tomar como objeto de ensino uma tradição literária, um conjunto de textos, mas ver o que essa tradição e esse conjunto de textos – selecionados em função de um determinado objetivo de ensino – propiciaria para a aprendizagem (o que supõe ver aí também uma concepção de aprendizagem: talvez um lugar para o jovem e para o seu presente na história da cultura).
Adotando esses pressupostos, consideramos que a leitura literária é então fundamental para a construção do sentido e do sujeito. Como diz ainda Paz,
“a leitura de um só poema nos revelará com maior certeza do que qualquer investigação histórica e filológica o que é toda a poesia”.
(Octavio Paz, O arco e a lira, p. 50)

É claro que falar em “leitura literária” não significa abandonar o estudo do texto; significa, antes de mais nada, que para se falar de um texto é preciso lê-lo, e que esse ler e falar sobre se assentam em determinados protocolos requeridos pelos próprios textos, como nos leva a pensar nossa idéia de gênero. Assim, ler poesia não é como ler uma notícia de jornal (aliás, é a isso que remete belissimamente o poeta Manuel Bandeira em seu “Poema tirado de uma notícia de jornal”): há um tempo e uma vivência que o poema exige ao apresentar imagens que não revelam todo o sentido de imediato, ao mesmo tempo em que, novamente citando Paz, “a experiência do poema – seu deleite através da leitura ou da recitação – também ostenta uma desconcertante pluralidade e heterogeneidade”, ou seja, por força das necessidades de ensino, voltadas para o coletivo, ocorre na sala de aula uma negociação de sentido que considera as referências comuns do grupo de estudantes (a “comunidade interpretativa”, no dizer de Stanley Fish ) e as interpretações críticas já convencionalizadas trazidas pelo professor, mas não deve tampouco ignorar as sugestões individuais que o poema propicia, que são, em suma, a essência de sua existência.
Para uns, o poema é a experiência do abandono; para outros, do rigor. Os jovens leem versos para ajudá-los a expressar ou conhecer seus sentimentos, como se só no poema as confusas, pressentidas facções do amor, do heroísmo ou da sensualidade pudessem contemplar-se com nitidez. Cada leitor busca algo no poema. E não é raro que o encontre: já o levava dentro”. (Paz, p. 50)

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Os projetos aqui apresentados possuíam estruturações as mais diversas, tendo em vista que aos grupos de licenciandos que os confeccionaram não era oferecida uma estrutura muito estrita de composição, contanto que explicitassem tema, objetivos, nível de ensino, metodologia e atividades (conteúdo, objetivos, estratégias, desenvolvimento e avaliação). Os quatro primeiros itens ficaram, nesta edição final do trabalho, incluídos na Introdução e a sequência de atividades, sob a rubrica Sequência Didática, com as atividades numeradas. Esta é a configuração formal de quatro dos cinco projetos publicados.
O texto inicial da revista, “Por um outro ensino”, de Dirceu Villa e João Vieira Jr., com estrutura diferente da dos demais, na verdade se apresenta como o relato do projeto desenvolvido por ambos os licenciandos numa escola do estado, tendo sido mantida sua forma original: uma edição mais “didatizada” prejudicaria a elegância da linguagem de seus autores e a fluidez do texto (além do mais, diga-se a bem da verdade, seus autores não autorizaram tal intervenção). Ao decidir abrir a edição com um texto transgressivo e em essência pouco “didático”, é porque compartilhamos da posição manifestada por ambos de que mudanças urgentes na relação professor-aluno e na formação do professor são necessárias, no sentido de torná-los, justamente, professores e alunos, mais livres de uma cultura “canônica” e, sobretudo, de um “ensino canonizado”. Nesse projeto, Dirceu e João enfatizam a surpreendente criação poética de alunos considerados “casos perdidos”.
Outro projeto também colocado em prática na escola é o de Mara Lucia Faria Costa, “Simbolismo e Impressionismo: um apelo aos sentidos”. Este trabalho começou com o grupo em sala, mas ao ir para o estágio e ter a oportunidade de colocá-lo em prática, Mara se viu obrigada a reformulá-lo inteiramente; assim, tendo se perdido o projeto coletivo, optamos por publicar o individual. Para colocá-lo em prática, a autora aproveitou um material que se encontrava esquecido no armário da diretora, um conjunto de reproduções de pinturas do impressionismo, e com ele desenvolveu o projeto relacionando poesia, artes plásticas e música. Tais relações são muito profícuas para o aluno, que vive mais dentro de uma iconosfera povoada por imagens efêmeras da mídia e sons contemporâneos. Aproveitar o encanto da figura e da música, provindas no entanto de uma outra esfera da cultura, age como importante fator de sedução e empatia e contamina com isso também a poesia simbolista, cujas metáforas às vezes se mostram herméticas para o jovem. A ênfase do trabalho recaiu sobre as “sugestões”, que é uma instância pouco mensurável em termos de aprendizagem, mas fundamental para o aguçamento da sensibilidade e para a abertura a novas relações e possibilidades artísticas.
O projeto “Poesia marginal da década de 70” oferece a possibilidade de, como o primeiro, promover uma vivência poética entre os alunos. Aproveita as características da poesia da chamada “geração 70” e suas formas de produção e divulgação “alternativas” ao esquema mercadológico de massa para propiciar aos alunos uma criação poética mais livre ao mesmo tempo em que é capaz de mobilizá-los de um jeito vitalizado, lúdico, permitindo também produzir arte a partir de suportes e materiais menos “nobres”, como se propugna, de resto, desde as vanguardas européias e o modernismo brasileiro.
Os outros dois projetos são, pode-se dizer, mais “didáticos”, no sentido de que recorrem a práticas escolares mais convencionalizadas (ainda que de uma tradição recente): como o varal de poesia ou a abordagem de poemas e letras de música com destaque para a comparação de conteúdo. Com procedimentos didáticos familiares aos professores o “Oficina de poesia” toma o cuidado de não torná-los contudo separados dos procedimentos que a poesia requer, como não desvinculá-los do sentido e da interpretação bem como da leitura fruidora. O último projeto, “Música e poesia”, talvez seja o mais inacabado de todos: o projeto inicial era enorme e desenvolvia de modo extenso mas pouco significativas as comparações entre música e poesia; com muitos cortes, a edição final manteve as atividades com apenas três pares de poemas/letras, manteve-se os outros dois pares como sugestão somente, além de eliminar muito da biografia e comentários históricos, pois acredita-se que o professores e alunos possam fazer disso uma pesquisa bem mais interessante. O projeto foi indicado para publicação principalmente em razão das boas seleções de obras, que oferecem possibilidades inusitadas e ricas de comparação, ainda que vá exigir do professor que a adotar um trabalho intenso de reflexão e planejamento.
Esses projetos nasceram de idéias compartilhadas, de projetos anteriores, de embriões de projetos ou idéias secundárias e decerto ganharão variações nos futuros projetos a serem realizados na disciplina de MELP, são temas que possibilitam infinitas variações. Isso vale também para o professor em exercício que for aproveitar os trabalhos aqui apresentados. As idéias são bens coletivos, das quais nos apropriamos. Portanto, não há nenhum problema em se adaptar uma proposta à realidade de determinada escola ou sala de aula, nem o professor que o fizer deverá se sentir em débito com a produção alheia. Só não queremos que sejam desvitalizados, desvinculados de sentido, reduzidos a um conteúdo mecanizado.

Neide Luzia de Rezende
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Revista INFLUXO

Do número 1 da revista Influxo constam sequências didáticas que trabalham a poesia elaboradas por alunos de licenciatura em Português da FE-USP

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